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Meu corpo embalagem
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Meu corpo embalagem

Em mais uma tentativa de crônica a Cidade adoecida, quase o ano inteiro, febre alta. E as cidades que precisamos inventar para existimos
Tipo Crônica
0204demitri (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 0204demitri

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Tem uma febre, meio 38, perto de 39 graus, moendo a Cidade úmida em qualquer parte e assungando alguém nalgum bairro. Rico ou pobre, pior para a pobreza em seu estado costumeiro de zona de risco. Principalmente onde Fortaleza se desmilingue quando o inverno é bom.

Nenhuma culpa da chuva, não mesmo. No Semiárido, ela é melhor que qualquer pessoa, bicho, árvore ou prefeito e governador. Não temos como amaldiçoar a Terra e seus rebentos, por nada.

O nonsense é como desconstruimos o lugar onde fomos paridos. Invadido um dia e ainda com herança escrota dos bárbaros e amargos europeus. Portugueses primeiro e uma récua capitalista, até hoje. Basta olhar o litoral.

 

Inclusive, nós quando não "nascemos nos berços dos boçãis ou corrompidos de herança numa constelação familiar de arquétipos bostas

 

E aprendemos com eles mais lições sobre como negar a natureza e quem nela vive. Inclusive, nós quando não "nascemos nos berços dos boçãis ou corrompidos pela herança de uma constelação familiar de chacinas.

Ocorre assim, hoje, para sobrevivermos inventamos, em quase toda crise ou na "normalidade" do cotidiano, cidades particulares para viver. Até as que assasinam e a dos que matam.

 

Paris com os ratos se usufruindo, também, do lixo romântico dos rendez vous ao redor da insossa Torre Eiffel

 

Sim, tenho uma Fortaleza que preciso fabula-la quase perfeita. Pra eu continuar aqui e viver com quem tenho bem querer. Se não, me mudo para uma cidade invisível (e destinada) que ficciono ser melhor que aqui.

É Paris com os ratos usufruindo, também, do lixo romântico dos rendez vous ao redor da insossa Torre Eiffel.

É isso que, talvez, precisamos inventar. Uma Cidade dentro da Cidade, ou fora dela, para continuarmos sendo desconstrução de humanidade antropocêntrica e avara.

 

O Cocó, os passarinhos, o rio são invenções precárias que faço para escapes da Cidade em derretimento

 

Invento uma Fortaleza onde posso existir, dentro e fora, para sobreviver à febre de 38, 39 graus que me açoita na hora que estou escrevendo essa tentativa de crônica. Ou narrativa livre fora do tecnicismo jornalístico ou da literatura enjaulada.

O Cocó, os passarinhos, o rio são invenções precárias que faço para escapes da Cidade em derretimento. A falecida duna de Jericoacoara e a da Sabiaguaba - destruída dia a dia com o aval da Prefeitura de Fortaleza, do Governo do Estado, do Ministério Público, do Tribunal de Justiça e das pessoas - são crimes de lesa-natureza.

Traição covarde, desamor puro, insensibilidade para dosar dinheiro capital e permanência ambiental.

Invento mundinhos absurdos para não perecer à Cidade adoecida. É uma forma de desaçoite coletivo. Preciso acreditar que o Pajeú, um dia, vai voltar a ser bem cuidado.

 

Ser riacho e mar, conhecer baleias gigantescas, visitar navios naufragados com fantasmas de portugueses traficantes de gente preta

 

Darão remédio a ele e aos peixes inchados de bosta e asfalto. Medirão a febre, receitarão carinho ao riacho que nasceu para realizar um sonho arcaico de quem nasce no Semiárido, chegar ao mar.

Ser riacho e mar, conhecer baleias gigantescas, visitar navios naufragados com fantasmas de portugueses traficantes de gente preta. Conhecer um tubarão de pertinho e deixá-lo ser tubarão. Sem a imposição dele ter de comer lixo, plástico e sanitários.

Sentinas! Há um jangurussu de privadas reboladas no oceano. Imaginem aí? Tenho gastura quando avisto monturos pelas calçadas e canteiros de Fortaleza. Um resto de banheiro de alguém.

 

O Raimundo dos Queijos e os iludidos por lá. O animado Serpentina. Um botequim no São Cristóvão, doses de cachaça, um pedaço de mortadela e limão. O Clássico-Rei.

 

Fortaleza é cheia de invenções, particularmente urbanas, para sobreviver. O Raimundo dos Queijos e os iludidos por lá. O animado Serpentina. Um botequim no São Cristóvão, doses de cachaça, um pedaço de mortadela e limão. o Roblox. O Clássico-Rei.

É qualquer Cidade. Se não inventamos escapes cotidianos, sucumbiremos ao lixo que nós defecamos nas bananeiras e praças. E é com culpa, também. Mas nada como uma esmola na esquina ou dois reais por dois pacotinhos de amendoim pendurado no retrovisor.

Pagamos o pedágio cretino, permitindo que os miseráveis continuem a inventar uma revida paralela à casa inundada no bairro cortado por rios.

Agora, só no que se fala é no tal metaverso. Coisa abusada que temos que categorizar, mais uma vez, para continuarmos "produtivos" no tal presente e futuro. É a nova imposição digital para sobrevivermos na semiosfera respirando por canudos.

 

Falta uma invenção de Cidade, privada e voletiva, para esses matadores bolinados ou influenciado por uma mentalidade de arma na mão e agressividade normalizada

 

Porra! Já não basta escaparmos das facções, da covid quem teve a "sorte", de um mosquito fabuloso, da mentalidade bolsonarista, das merdas da esquerda, dos estudantes atirando em outros meninos e esfaqueando professoras?

Falta uma invenção de Cidade, privada e coletiva, para os matadores bolinados ou influenciado por uma mentalidade de arma na mão, de palavras odiosas, de pais ausentes e criados, também, na agressividade normalizada.

Parir e inventar meninos que não estupram não é fácil, mas não é uma jornada besta do herói. Os meus três, parições amorosas que chegaram depois de transas querençosas, quase 100%, não irão matar na escola. E, quase certeza, em nenhum outro lugar. Saulo, Sarah e Pedro.

 

Fortaleza, adoecida o ano inteiro, cheia de febre, precisa de Cidades inventadas nela mesmo para existirmos

 

Tentamos, a Virgínia, eu e uma rede protetora ao redor, inventar Cidades escapes para que não construíssem a morte dos outros que não seja a natural. Mas é preciso decifrar os meninos e as meninas que esfaqueiam e atiram. Eles estão pedindo.

Fortaleza, adoecida o ano inteiro, cheia de febre, precisa de Cidades inventadas nela para existirmos. Infelizmente ou sei lá qual o adjetivo. A gente acaba quase nem existindo.

Nessa hora de febre, penso em transas. Uma Cidade dentro do quarto, prazer por todas as possibilidades. A Cidade das intimidades bem íntimas e permitidas. Depois, é restarmos nus, ali, modorrando a longarina, acarinhando o corpo renascido depois do gozo ou apenas na viçagem.

São 5h19min de 1º de Abril, perdi o sono para o texto que veio. Vou tomar outro dorflex e aquietar meu corpo embalagem não descartável nas minhas Cidades inventadas.

Sim, a arte do Carlus Campos está impagável. É metatexto, metaverso. Transamos no universo paralelo da crônica toda sexta-feira. 

 

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