Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
Uma texto contra a perversidade, que também forjou Fortaleza e muitas de suas relações brutas. Mas ainda há gente que toma chá no ninho dos passarinhos
A crônica encontra seus atalhos quando quer. E por mais que empaque em algo do desejo de transformar em texto, muitas vezes, ela se escreve imperativa. Sem ser autoritária.
Talvez não tenha a ver com literatura, talvez as vontades do corpo e dos inquietos na gente. Do que em desvelo nos atinge, de sopapo amoroso ao repente por uma história fabulosa que carecemos tanto.
É para quebrar a sisudez da semana, o atordoado das coisas eleitas como importantes e a obrigação de consumi-las porque todo mundo está comentando e tenho também que me acorrentar.
Uma senhora que me contou sobre uma serpente vivente no embaixo dos túmulos do São João Batista
Passei o dia de ontem, tentando costurar uma história que ouvi da dona Socorro Jerônimo. Uma senhora que me contou sobre uma serpente vivente no embaixo dos túmulos do São João Batista, em Fortaleza.
Uma cobra enorme, alada, que antes era um homem muito ruim e continuou sendo depois da morte. Tanto que o enterraram em uma espécie de cativeiro largo no embaixo do embaixo cemitério mais antigo da Cidade.
Na verdade, ela havia me contado que seria uma mulher. Mas fiquei pensando que os homens sempre foram mais violentos. Pelo próprio jeito que fomos mal-criados e machos. Então, só mexi um pouquinho.
Quase todo mundo se pela de medo de cobra. Uns correm, outros vão de pauladas, facão e torturas
A figura da cobra associada à perversidade humana também me incomodou. Por anos, e até hoje, as serpentes apedrejadas quando aparecem atrás de um canto quente porque o sangue é frio.
Quase todo mundo se pela de medo de cobra. Uns correm, outros vão de pauladas, facão e torturas. E o acaso dela topar com um ser humano violento, provavelmente dará em sua morte. Ela não ataca, ele contra-ataca de medo e foge se puder.
Ver uma cobra? É sorte. Passa que ela também seguirá o caminho até se mimetizar nas coisas, no lixo urbano. Na quentura de algum ferro ou motor de carro.
Pois bem, a serpente alada do São João Batista - macho ou fêmea - ainda viveria se movimentando entre as covas do São João Batista. No debaixo do debaixo e um canal a levaria até o mar da Leste Oeste.
Ela dorme na área rica do cemitério. Logo depois do portão de entrada onde estão quase todos os presidentes da província
Não se solta e não volta à superfície de Fortaleza porque as águas a impediriam. E pela terra dos mortos não consegue transpor as almas dos que enchem o São João Batista.
Preferencialmente, ela dorme na área rica do cemitério. Logo depois do portão de entrada onde estão quase todos os presidentes da província, os governadores e os capitalistas que construíram túmulos eurocentristas.
No mármore negro, com colunas gregas, com estátuas de soldados romanos na entrada do jazigo. No meio da porcelana e do mesmo ferro importado para construir o Theatro José de Alencar.
Esse povo no açoite, nas senzalas no debaixo do debaixo das casas dos ricos. No quintal, amarrado em um tronco e chibata
Dá pra ouvir, do túmulo de Caio Prado, uma respiração de cobra alada. Nunca ouviram? Fechem os olhos. Imaginem Fortaleza no cenário da escravização de negros, na catequização e estupro de indígenas.
Esse povo no açoite, nas senzalas no debaixo do debaixo das casas dos ricos. No quintal, amarrado em um tronco e chibata com pontas de ferro. Os torturadores foram morrendo e a serpente alada foi crescendo nos enterramentos.
Vive ainda enorme tantos anos depois das invasões europeias e da formação dessa mentalidade que ainda hoje habita Fortaleza. Das facções em sua rebeldia marginal à elite branca de água e sal, que se sente dona até do mar.
Tinha sonhado tomando chá com os passarinhos no ninho. Achei isso um desvio apraz contra a perversidade
Há essa lenda por debaixo do São João Batista, retrato de Fortaleza. Bem desenhado, ricos e pobres bem apartados. E uma serpente raivosa tenta se soltar e fugir pelo mar para mais ruindade.
Não sei se este texto é uma crônica sobre a Cidade onde fui parido pardo. Nem sei de minhas origens portuguesas, holandesas, espanholas e outros bárbaros estrangeiros. Não me contaram sobre os indígenas nem sobre os afros de minha existência.
Deve haver mesmo uma serpente síntese, no debaixo do debaixo do São João Batista. O esquecimento de como fomos forjados, também, na brutalidade.
Vou ficar com o sonho do Karlos Artur, um amigo-menino-do-mato que tenho. Ele amanheceu ontem ou antes de ontem, dizendo que tinha sonhado tomando chá com os passarinhos no ninho. Achei isso um desvio apraz contra a perversidade. Pode me convidar.
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