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A vida após a fotografia
Foto de Demitri Túlio
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

A vida após a fotografia

É, talvez, uma crônica sobre recordar dos outros e não deixar apagar as lembranças de cidades já vividas
Tipo Crônica
2304demitri (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 2304demitri

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A menina se veste assim. Dentro de um vestido de marinheiro, sapatinhos brancos cara de bebê e meias curtas. Está sentada com uma mão entre as pernas e a outra no joelho.

O cabelo, cortado em cuia, é de menino branco ou de um curumim nascido em uma Fortaleza bem antiga. Ela é branca e onde está sentada, mesmo sendo no chão, diz que os pais dela não seriam pobres.

O olhar da garota é atilado e apesar de ter dois anos de idade, a infanta aparenta ter nascido adulta.

Tem uma aparência de um espírito antigo. Talvez sejam os olhos fixos em algo, o pecoço sem pender, o nariz comprido e a boca pequena desenhada num pequeno traço. Não há sorriso.

 

Há centenas de mortos velhos e recentes, mas o corpo da gente, de repente, estaciona quase infinito em frente ao túmulo dela

 

Não tem quem não pare quando se é passageiro pela rua 26, do 2º plano norte. Ela está debaixo de uma sombra feita por alguns pés de giriquiti que interrompem o sol e a quentura, há sementes vermelhas no solo. Recordo de minha infância.

O olhar chamante dela faz qualquer um enraizar. É silenciosa a conversa e a fotografia, em preto e branco, a deixa viva desde 1917 no cemitério São João Batista.

Há centenas de mortos velhos e recentes, mas o corpo da gente, de repente, estaciona quase infinito em frente ao túmulo dela.

É, também, porque no pé do mármore branco, entre flores e folhas de plástico que nunca morrem, há dezenas de agradecimentos à menina Lúcia ou Lúcia Santinha por graças alcançadas.

 

Centenas ali, no sepulcrário, deitados para sempre, já foram deslembrados até pela família

 

É proibido acender velas na moradia da santificada pela igreja dos anônimos.

É o nosso instinto encantador de dar ousadia às almas e oferecer, para algumas, o poder de viver depois da morte.

Centenas ali, no sepulcrário, deitados para sempre, já foram deslembrados até pela família.

Lúcia, nascida em 1915 e morta em 1917, virou algo sublime no miraculoso dos precisados.

Há alguém agradecido na plaquinha de pedra ou de liga de aço. Pela gravidez que vingou, pelo filho que se esquivou da morte.

 

Lúcia está à beira do caminho principal do São João Batista. É dessas sepultadas que moram em lugar privilegiado

 

"Agradeço pela graça alcançada. Em 14.02.2022. Meu George". "Priscila agradece a graça alcançada". "Agradeço à Lúcia 2 graças". "Obrigado pelo Pedro". "Eu, Claudemir, agradeço à Lúcia pela graça alcançada. 16.12.2016"...

Lúcia está à beira do caminho principal do São João Batista. É dessas sepultadas que moram em lugar privilegiado, antes da primeira metade do carneiro.

Talvez, já no final do carneiro dos afortunados da província. Um território, até no cemitério, bem separado. Mesmo depois de não valerem mais nada. Alguns ainda valem saudades.

 

Viveu breve, era irmã de dona Luíza Távora - esposa do governador Virgílio Távora. Os dois já finados

 

No almocábar mais antigo da Cidade não há história sobre os porquês do falecimento de Lúcia aos dois anos de existência.

Viveu breve, era irmã de dona Luíza Távora - esposa do governador Virgílio Távora. Os dois já finados e encerrados na parte de cima, no caminho da igreja. Longe dela.

Lúcia seria uma menina neurodivergente e, um dia, teria saído sozinha e entrado numa fotografia de Fortaleza, em 1917, num matagal. Deram pela falta dela e, depois, a encontraram morta. É a versão contada no ouvir dizer sobre a "santificada".

Célia Morais Correia, sobrinha de Lúcia, desfaz a história da morte na mata. A menina padeceu de uma tuberculose. História contada por tia Cristina, hoje com 96 anos de idade e lembranças da irmã que se foi aos dois anos de idade.   

Dizem que Lúcia, interrompida ainda anja, é milagreira.

Ela vive numa fotografia em preto e branco, olhar certeiro de dentro pra fora, e na insistência jaculatória dos que a santificaram.

 

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Foto do Demitri Túlio

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