Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
Minha rua, a rua que tomei para minha infância, não tinha piscina. Nenhuma casa da Tavares Iracema com Major Pedro Sampaio tinha aquele "cômodo" de quem podia.
Pra melhor esquadrinhar, no bairro mapeado na memória, o Porangabuçu - somando umas dez ruas ao redor da minha - não existia casa com piscina.
Piscina era um compartimento inventado nos desejos. Significava quase como uma certidão de família "boa". Um atestado da condição afortunada de um menino ou menina "bem-nascida".
Tinha dessas quizilas de quem tinha piscina e olhava entortado para uma récua de pivetes e pivetas
Era, talvez, a porta do quarto proibido do castelo de uma deusa de uma das histórias de Sahrãzãd ou Sherazade. E por que não ter direito a se banhar na piscina?
Tinha dessas quizilas de quem tinha piscina e olhava entortado para uma récua de pivetes e pivetas que, por um tempo, se enxergavam menos na Cidade.
Buraco azulejado dos sonhos. Motivo de um sentimento estranho com quem podia ter um "clube" no quintal. Cadeiras diferentes das de dentro de casa, guarda-sóis e uma bica para tirar o cloro dos cabelos. Roupão e saída de banho!
Queriam que a gente acreditasse que o povo que morava na Aldeota, gente "apiscinada", era melhor que nós
Casa com piscina, passar num concurso para um banco, se casar, comprar um carrão, ter filhos, ler aos domingos o jornalzinho na igreja e ser o melhor amigo do padre. Foi assim que a vida foi pautada para os sem piscinas de minha geração.
Parece que queriam que a gente acreditasse que o povo que morava na Aldeota, gente "apiscinada", era melhor que nós. Porque, além de tudo, tinha ainda o direito ao cloro. O excedente dos privilégios.
Engraçado é que o "meu" colégio, o Redentorista, era uma escola de padres meio vermelhos. A maioria era da igreja preferencial pelos pobres, mas eles não deixavam a gente tomar banho na piscina.
E aí, feito meninos e meninas, tomávamos banho porque também tínhamos o direito de experimentar a piscina dos que tinham piscina.
Pulávamos as grades quando os fiscais não existiam nos corredores e, com prazer, não era incômodo sair da água com os olhos avermelhados e pele engelhada nos dedos.
Um dia, os militares da ditadura (que quase não se acaba) fizeram pra gente os Centros Sociais Urbanos. Não tomaríamos banho nas piscinas do CSU dos golpistas. Aprenderíamos a nadar. Um esporte disciplinador.
Nem sei por qual motivo estou escrevendo este texto. Talvez mexido com a exposição e o título dela: "Negros na piscina"
Mas queríamos brincar era dentro d'água, naquele retângulo comprido que se diferenciava do açude, do rio e do Atlântico onde a vida também se divertia com a gente.
Nem sei por qual motivo estou escrevendo este texto. Talvez mexido com a exposição e o título dela: "Negros na piscina". Arte exposta, até ontem, na Pinacoteca da Estação das Artes. Curadoria de Fabiana Moraes e Moacir dos Anjos.
Os "vulneráveis", carimbo que deram aos sem-piscina e ainda hoje dão, também têm direito de escolher se querem ou não uma bica para remover o cloro dos cabelos depois de se banharem na água azulejada.
Pra raiva de James Brock, um pobre gerente das coisas dos que têm, os pobres se jogarem nas piscinas tirou o intangível do que essa gente metida à besta segregava.
As domésticas podem ir à Disney, sim, mas preferem o forró da Pacatuba. Ou os dois e entrar na universidade.
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