Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
Começo assim a crônica, com troca de bilhetinhos. Primeiro com a Dani. Dani é a mesma Daniela Nogueira, jornalista, parceira de Redação e amiga de falar da vida dos outros. É muito bom falar da vida alheia.
Escreveu-me emocionada com o retorno e o esbarro, em um dos corredores do jornal, de duas repórteres que estavam afastadas do ofício porque a vida, num ou noutro repente, nos acerta inesperados loopings.
Disse-me com voz de texto. Presenciei o reencontro de duas colegas. Uma, 1 mês pós-morte do marido. Outra, 1 ano pós-tratamento contra o câncer. Num abraço quiseram saber da vida.
É um processo difícil, mas preciso reiniciar. Tenho que retomar a vida". A outra repetiu tudo
Uma respondeu: "É um processo difícil, mas preciso reiniciar. Tenho que retomar a vida". A outra repetiu tudo. Mesmas palavras, quase o mesmo olhar. Riram, riram-se. Achei triste, alegre, enchi os olhos d'água, chovi discreto e, depois, se encheu de vagalumes.
O reencontro foi entre Lêda Maria e Neila Fontenele. Duas carpinteiras da informação, experientes e do naipe das mulheres fortes que estão ou já passaram pelo O POVO. De 27 anos para cá, conheci mais de uma centena dessa espécie de árvore.
Lêda Maria está reaprendendo a rebrotar sem o jornalista Souto Paulino, companheiro dela em mais de 50 anos e três filhas. As quatro, há algumas semanas, cantaram uma jura de amor na "derradeirice" do marido e pai.
Finjo uma girafa quando não sei o que fazer para sarar alguma coisa em mim ou em alguém
Como é que vou viver sem ele? Lêda me suspirou durante o velório num abraço. Não respondi porque vivo cheio de interrogações. Até quis me transformar numa girafa, ali, na casa de despedida. Colocá-la no pescoço longo, fazê-la sair do desassossego.
Finjo uma girafa quando não sei o que fazer para sarar alguma coisa em mim ou em alguém. Nem era para ser assim porque as pessoas bebem um lambedor feito de tempo e as coisas, numa hora, desentalam. Ou não.
Ou elas, precisadas de presença, se transformam em girafa e alcançam no olho da goiabeira a cajarana mais inchada para comer com sal. Vivo com a cabeça nas nuvens e por isso escrevo desvios.
Distribuiu abraços, foi abraçada e, penso, não se cansou de responder que estava bem e mais meiguiceira com o corpo-jornada
Neila Fontenele, afastada da convivência da Redação para cuidar de um câncer de mama, parece ter voltado com um saco cheio de cajás. Daqueles gordos na boca ou redemoinhando no liquidificador.
Distribuiu abraços, foi abraçada e, penso, não se cansou de responder que estava bem e mais meiguiceira com o corpo-jornada. Claro que teve medos, ainda tem, mas não está dando ousadia ao porvir. Curou-se.
Lêda e Neila me fizeram pensar em Maria Virgínia, minha ex-companheira e mãe do Saulo, da Sarah e do Pedro. Um dia, aleatoriamente, também levou uma lufada de solavancos.
Virgínia está numa jornada contra a leucemia, é uma montanha cheia de ursos e você precisa aprender a conviver com eles
É assim, você está bem ou indo numa cartesianidade e, do nada, um diagnóstico te faz perder o chão. Você chora, claro. Mal diz tudo, duvida da fé, faz mil perguntas e passa a encarar o avesso também.
Virgínia está numa jornada contra a leucemia, é uma montanha cheia de ursos e você precisa aprender a conviver com eles. E vai conseguindo, aprendendo a respeitar a hibernação deles e até passa a lutar contra os desmatamentos para evitar a extinção de seres tão extraordinários.
Idiotas, semelhantes a mim, olham e questionam os inesperados da existência. Os destinos de uns e de outros... Quando a gente tem uma tribulação na vida, talvez seja preciso aprender a receber. É um senso besta, bem comum, mas é. E creio que Virgínia vai se curar com o mar.
Sobre o cachorro, do título da crônica, conto noutra. De um dog pé-duro, calorento, que adotou o ar-condicionado da Extrafarma da 13 de Maio porque não tem dinheiro para comprar Pardal de castanha na Marechal Deodoro.
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