Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
Arriscaria mais uma vez dizer que quase tudo é performance. Cada um vai se acostumando com o poder e a ruindade, seja qual for o tônus incorporado, e, provavelmente, não prescindirá mais viver sem exercê-los sobre alguém, alguma coisa e qualquer ser vivo.
A gente adora a rédea e os freios na embocadura, até para nossas veleidades. Numa hora, montado em alguém, o surpreendemos com os ferros entre os dentes e o bicho resignado babará tragicamente o desassossego na garganta. É um gozo para o soez.
Ora, até o mais miserável do submetido encontrará alguma forma de ter mando nem que seja sobre um agonizante. Se tiver a chance, ameaçará seccioná-lo e arremessá-lo aos mucuins (eles adoram o odor do medo). É lida da atemorização, da invasão ao corpo existência do outro.
O nosso corpo mal-educado de passado, de presente e de senso comum perpétuo quase se esvai em maravilhamento
Há exceções, acasos talvez. É quando, raro, vemos o avesso da maldade, do machismo, do racismo, do vil, se manifestar. Entramos em incoporações de sensibilidades. O nosso corpo mal-educado de passado, de presente e de senso comum perpétuo quase se esvai em maravilhamento. Nem que seja um tantinho, é o indizível arrebatador.
Na terça ou quarta-feira, li um desses encantamentos. Vi o esvaziamento "de poder" numa ação banalíssima, mas extremosa de alargamento para a vida do outro e dos encantados. Alguns dirão: "uma besteira!".
Quatro policiais militares - em lugares diferentes da Grande Fortaleza, no Jangurussu e em Caucaia - acudiram pais desesperados com recém-nascidos aos braços e o desespero do engasgo das crias. Uma com leite materno e a outra com o próprio vômito.
Li aquilo com tanto impacto que, ainda por agora, tive um incêndio renovador no coração incréu
Os cabos Ribeiro e Halisson e os soldados Soares e Cavalcante passavam na hora da agonia e se entregaram às crianças para trazê-las de volta à respiração. Li aquilo com tanto impacto que, ainda por agora, tive um incêndio renovador no coração incréu.
Os militares estavam ali sem nenhum poder dado a eles, embora a farda, embora o revólver, embora o desequilíbrio social justificador da existência da lida deles. Porque parimos - no escravagismo, no capitalismo ou noutro esterco - a construção do "bandido", do "perigoso", do "suspeito" e da "necessidade" de existir a "polícia".
Poderia ser um médico, mas o médico era óbvio demais o poder "sobrenatural" dado a ele na categorização careta do mundo, do "ter poder" sobre a vida de quem precisa ser acudido. Estou falando de esvaziamentos das hierarquias de mando, de obediência e do momento em que somos fascinados pelo avesso da brutalização incutida.
Herdamos experimentos desumanos de 388 de subjugação, tortura e cativeiro para indígenas e negros
É mandamento querer ter superintendência sobre algo, sobre alguém. A impostura é desde as caravelas e a pia batismal. Aqui, particularmente, herdamos experimentos desumanos de 388 de subjugação, tortura e cativeiro para indígenas e negros. E foi impingida uma abolição requenguela.
Na outra ponta do chicote, tinham (ainda têm na descendência dos privilegiados) as mãos dos herdeiros de quem definiu o "direito" de ser donatário de uma floresta inteira para derrubá-la e ainda ter uma "Iracema" ou uma "negra sem nome" para estuprar.
É que ainda não desterramos o micélio perverso encalacrado e o perpetuamos na cozinha de casa, nas redes sociais e na baixa da égua. Na real, nosso antirracismo tem voo de galinha.
Foi em mim o fascínio e causado pelo desapego, mesmo que momentâneo, de poder e submissão
Falo racismo e cabem também a misoginia, a homofobia, o capacitismo, o machismo e outras escrotices enrustidas nos corpos adulterados da gente...
Vou ficar com o efêmero surpreendente dos quatro policiais militares. Claro, já ocorreram outros desengasgos de bebês por ação de PMs. E não acho que o mundo tem jeito por causa desse happening. Foi em mim o fascínio e causado pelo desapego, mesmo que momentâneo, de poder e submissão. Um enlevo para o corpo mal herdado.
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