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Arreliou, acutilou-me
Foto de Demitri Túlio
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Arreliou, acutilou-me

Meio que tive uma fraqueza, mas me sustentei nas pernas. Mãe, a senhora vai se orgulhar de me ver bailarino sanhaçu! Voando beija-flor
Tipo Crônica
Demitri 140124 (Foto: Carlus Campos)
Foto: Carlus Campos Demitri 140124

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Quando sonhei pra mamãe que queria ser um sanhaçu bailarino e me apresentar no patamar da igreja de Nossa Senhora de Salete, ela quase infartou. Feito um macho, ela rasgou os olhos em fogo.

Virada num guaxinim arreliado, arranhou a porta e meia da cozinha e mijou impregnante no uru onde estavam as cuecas para lavar. Ali, se ajuntava a roupa dos meninos homens, de meu pai e de meu avô que fumava Arizona sem filtro.

Assustei-me. Eu era um infante, 9 ou 10 anos de idade e a ditadura de generais e civis, lá fora, torturando e sumindo com uma porrada de meninas e meninos - vinte e poucos anos de vida.

 

Nunca vi mamãe naquele estado de permanência. Em dois sopapos, ela acutilou uma franguinha que se espremia 

 

Ela veio pra cima de mim, asa de harpia levantada, voou e deu dois rasantes por cima de minha cabeça e minhas orelhas de abano querendo voar atrás dela. Dançar nas nuvens.

Eu disse de novo. Mãe, quero ser um bailarino sanhaçu ou uma saí-azul rodopiante - desejo vestir a roupa da fêmea que é verdelina e tem sobrancelhas pintadas. Vou me apresentar no átrio da igreja, calçar sapatilhas turquesas e orgulhar a senhora.

Nunca vi mamãe naquele estado de permanência. Em dois sopapos, ela acutilou uma franguinha que se espremia para botar o primeiro ovo. Bem pequeno ainda, meio azulado. Não tinha visto boniteza tão surpreendente.

 

Enfarada, mamãe cheia de garras me arrastou do chão e jogou-me contra uma das paredes da cozinha

 

Tocou no rádio de meu avô, Ednardo. Adorava aquela canção e me dava esperança ouvir a história de um padeiro entregando pão. Era tão minha rua! Também desejei um dia ter uma bicicleta, um cesto enorme e distribuir pão.

Mãe - eu disse com carinho - aprendi a fazer um padedê. Em francês, mãe, é "pas-de-deux"! Aprendo rápido essas coisas, mãe. Preciso de um parceiro para me levantar.

Enfarada, mamãe cheia de garras me arrastou do chão e jogou-me contra uma das paredes da cozinha. Achei rude o movimento, mas entendi que ela precisava aprender mais sobre as coisas. Ou o pouco que eu tinha lido e assistido.

 

Mamãe desceu uma onça parda macho. Arrodeou-me babando, rastou as patas, esturrou colhudo

 

Levantei-me, meio com dores, e gentilmente fui ensinar a ela. Mãe, tá ouvindo a música? "Menos naquela, naquela, naquela não..". A senhora faz ponta de pé, dá um saltito e desce emplumando.

Mamãe desceu uma onça parda macho. Arrodeou-me babando, rastou as patas, esturrou colhudo e deu-me um rodopio que tonteei a vista. Cambaleei e ela surrou com as patas, para eu me pôr em pé. Encostou-me na Singer, que brincávamos de dirigir ônibus, e bafejou nas minhas narinas.

Mãe - ri pra ela - a dança tem de ser mais avoante. Vi um homem dançando na TV da vizinha, ele flutuava! Fred Astaire. Pronunciei como se lê, parece que ainda vejo a cena na casa da infância, no Porangabuçu.

 

Voei esvoaçante! "Anavatu, Anavantu, anavantu, anarriê, Nê pa dê quá, nê pa dê quá, padê burrê

 

Dessa vez, ela me deu uma patada. As unhas dela não estavam feitas, dona Toinha - a manicure - ia passar exatamente naquele sábado. Sangrei na perna, no braço, um pouquinho no rosto.

Meio que tive uma fraqueza, mas me sustentei nas pernas. Mãe, a senhora vai se orgulhar de me ver bailarino sanhaçu! Voando beija-flor, de casa em casa, entregando pão!

Voei esvoaçante! "Anavantu, anavantu, anavantu, anarriê, Nê pa dê quá, nê pa dê quá, padê burrê. Igualitê, fraternitê e liberte, Merci bocu, merci bocu, não há de quê...".

Chibante, mamãe me golpeou no rosto novamente. Tava mais macho, parecia meu pai, meu avô e os outros que bebiam e se matavam na faca na bodega de Seu Geraldo.

Eu ainda quis dançar... no rádio de vovô tocou "Asa Partida". Corri, saltei, rodei no próprio eixo... Mamãe, escuta a música! É redemoinho. Dance comigo, eu tenho um negócio no corpo. Ela até chorou, mas esturrou como no começo da anunciação.

Lacerou-me novamente, cai entregue no mosaico frio, suspirei... e vi um sanhaçu indo embora.

 

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