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O farol do Alberto
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Demitri Túlio é editor-adjunto do Núcleo de Audiovisual do O POVO, além de ser cronista da Casa. É vencedor de mais de 40 prêmios de jornalsimo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. Também é autor de teatro e de literatura infantil, com mais de 10 publicações

O farol do Alberto

O pargo frito e a conversa com o Alberto são deliciosas. Um restaurante barco ancorado nas memórias e na história social da Barra
Tipo Crônica
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1703demitri (Foto: Carlus Campos)
Foto: Carlus Campos 1703demitri

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O restaurante Albertu's agora é um Museu Orgânico reconhecido pelo Sesc Ceará e pela Fundação Casa Grande. De verdade, já era um disco voador da cultura ancorado há 60 anos no beiço do rio Ceará, bem perto da Boca da Barra que engole o Atlântico e, também, é penetrada pelo oceano.

Bem antes desse tipo de tutela cartesiana que categoriza as coisas e as pessoas, a barraca de seu Alberto de Souza (o pai) e, depois, transformada no restaurante do Alberto Filho (atual), já era um lugar entrançado pelo canelau e por bacanas.

Era num domingo dos anos de 1970, pelo menos uma vez perdida, e meu pai inventava de ir à Barra do Ceará. Farofau mesmo. Fui criado também no frango na lata, areia, sal do mar, na fome e picolé pé duro.

 

Ótimo porque havia a aventura dos seis irmãos, meu pai e minha mãe atravessarmos para o outro lado da Barra 

 

Uma vez ou outra, talvez começo de mês, íamos ter com um pargo frito no Albertu´s. A memória já anda me traindo e posso ter inventado a lembrança porque achava aquilo bom e assustador.

Ótimo porque havia a aventura dos seis irmãos, meu pai e minha mãe atravessarmos para o outro lado da Barra do Rio Ceará. Numa canoa precária, o mar-e-o-rio rente ao madeiro mais alto da embarcação e o auxiliar do barqueiro a tirar, com uma lata, o afogamento.

Era a morte lambendo e o mar assombrando meus olhos até chegar a outra margem. A terceira margem do rio misturada às salinas e porcas gigantes, peitos cheios e fuçando nojentezas.

 

Mas a Barra foi mudando, a ponte sobre o rio Ceará veio, os canoeiros sumiram quase todos e a favela ocupou as dunas

 

Quando voltávamos, havia a possibilidade de ir ao seu Alberto. Meu pai beber algum álcool e a gente dividir um casco de Wilson para cada dois irmãos. Mais um pargo frito, tomate, cebola branca, batata frita, farofa e alface para oito. Mas eram meninos e meninas demais, seis bocas, me sentia uma boca porque ouvia que éramos bocas.

Mas a Barra foi mudando, a ponte sobre o rio Ceará veio, os canoeiros sumiram quase todos e a favela ocupou as dunas de São Tiago. As facções encostaram lá e, também, no Parque Leblon e Vila Velha.

O Alberto Filho, 64, virou o véi do Rio e do Mar. "Véi" é uma forma afetuosa, um título de quem guarda a memória e, talvez, seja o berrante mais incomodo contra a degradação e esquecimento do lugar tão belo.

 

Haveria ali uma baleia descomunal, despida, que se banhava no canal profundo e foi arpada pelos invasores luso-cristãos

 

Talvez, mais belo que a Beira Mar, a Praia de Iracema, a Praia da Leste, a Praia do Futuro e menos bonito que a Sabiaguaba e as luas dunares. A Barra do Rio Ceará, com o Atlântico, é uma alucinação de assombro. O mar conta histórias dos longes...

Tenho na memória "aquele lugar, o ar, primeiro fiquei sabendo que gostava de Diadorim. De amor mesmo". Haveria ali uma baleia descomunal, despida, que se banhava no canal profundo e foi arpada pelos invasores luso-cristãos cafonas que chegaram e estupraram nossas primeiras mães e avós indígenas.

Por isso fiquei tão engastado pelo tal "marco zero de Fortaleza" na Barra. Uma comemoração aos invasores europeus. Brutalidade hispano-cristã! Escrotidão e, até hoje, nenhum "marco indígena" de nação já existente - os tapebas. Ou dos pretos exilados.

 

Teve uma vantagem ter virado patrimônio cotidiano a construção simples de alvenaria do Alberto à beira do Atlântico

 

O restaurante Albertu's tem sua importância de memorial vivo; as casinhas; a colônia de pescadores que sumiu; a cachaça; o fedor atraente do peixe fresco; e a ilusão do homem do mar que não conseguiu sobreviver em terra firme.

Teve uma vantagem ter virado patrimônio cotidiano a construção simples de alvenaria do Alberto à beira do Atlântico, mesmo em terreno de marinha. Digo, sim, porque a especulação imobiliária da burguesia esnobe não conseguiu fazer o mesmo que fez na Beira Mar e no Cocó.

Parece uma vitória às avessas da arraia miúda. Na Barra do Ceará, no beiço do Atlântico, não! Nenhum grande hotel. Nenhum sobrenome de família "boa", que provavelmente teve fazenda de escravizados, vigou naquela praia.

 

A mais recente vingança foi do intendente e do vice intendente de Fortaleza. Inauguraram o calçadão sem construir banheiros 

 

Sim, a elite luso-cristã cafona do Ceará é vingativa, guarda rancor e, sempre, será avara. Fez amontoar um crescimento urbano desordenado na Barra, inventou o tribunal do crime das facções, confinou os indígenas a uma favela no manguezal. E açoita, toujours, o mangue e o rio...

A mais recente vingança foi do intendente e do vice intendente de Fortaleza. Inauguraram o calçadão turístico sem construir banheiros públicos, bem diferente do megaprojeto da Beira Mar dos ricos.

O pargo frito e a conversa com o Alberto são deliciosas. Um restaurante barco ancorado nas memórias e na história social e da Barra.

 

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