Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
Talvez - adoro este advérbio - minha família seja estranha. Melhor dizendo, há nela abundâncias impressionáveis. Subterfúgios enterrados, não ditos ou esquartejados de juízo pensado. E cada vez que um fóssil surge na cozinha, no quarto, na sala de jantar, fico estremecido e com vontades.
Já escrevi aqui sobre uma tia que não dorme há 45 anos. Este ano, completarão 46 anos vagando durante as noites. Hoje, mora sozinha num apartamento em cima do meu. Escuto-a arrastar cadeiras, caminhar quilômetros.
E quando amanhece conta sobre os sonhos que nunca teve e nenhuma raiz de chá a derruba. Gosto dela, seus 80 e poucos anos, sua vida de juíza de Direito, tempo em que saiu comprando terras nos Inhamuns - onde a água é uma exceção e ainda há muita história enterrada.
De estranhezas! Gosto de ouvi-las. De um fiapo ocasional de conversa escapou sobre o casamento malsucedido e o amor que tinha por uma sobrinha. Uma penitente de lâmina e fogaréu, por isso ia a todas às procissões de Juazeiro do Norte e de Aurora. Só não ia ao pau de Santo Antônio, em Barbalha. Machos demais!
E quando amanhece conta sobre os sonhos que nunca teve e nenhuma raiz de chá a derruba
Tinha carrões, mas se preparava para seguir, durante um mês, a pé de Tauá ao Cariri. Sozinha nos novembros, numa jornada que a família duvidava que a reencontrasse nos natais. Mas, quando menos se dava fé, ressuscitava naquelas festas entre tristes e comilanças até vomitar.
Está solitária hoje. Lê minhas colunas no jornal e acha que dei para algo. Meio que pensava que a récua de meia dúzia de gatos paridos por dona Edmar, minha mãe e irmã dela, não vingaria.
Não tenho pena de minha tia, sem sonhos há 45 anos (quase 46) é isenta de pesadelos recorrentes. Eram muitos, me disse, quando foi uma mulher togada. Época em que todas as almas da Barragem dos Patu lhe apareciam à porta.
Os agastados vinham, ocupavam umas das fazendas que comprou em Solonópole - nos Sertões do Meio
Ficavam dias paradas, silentes. E ela não abria a porta, tremendo até as carnes das virilhas. Aquele povo morto há tempos e a cobrar-lhe algo. Mas logo ela! Meio justa, meio compulsiva por terras alheias baratas.
Os agastados vinham, ocupavam umas das fazendas que comprou em Solonópole - nos Sertões do Meio -, passavam sete dias e, por derradeiro, sumiam pelos cenotáfios das estradas velhas das secas. Pediu e foi atendida para ser mudada de comarca. Mas eles acertavam, de novo, com o destino dela.
Um outro assombro é a história de um dos meus avôs. E eu gostava tanto dele! Não sei se ainda o quero bem... Foi verdade, dei uma de repórter. Internou uma de minhas avós no Mira Y López - um dispensário para loucos ou seres que foram sacaneados.
Somente não tinha "berço", era uma preta acaboclada, bonita, bundas enormes, bico dos seios negros e defeituosamente apaixonada
Vovó foi assim, ela não estaria fora da normalidade rotineira de quase todos por aqui. Fazia as coisas iguais todos dias. Repetia costumes, catequeses, sensos comuns. Era uma civilizada e trabalhava feito um dromedário. Não tinha sinais de quebra de mesmices.
Somente não tinha "berço", era uma preta acaboclada, bonita, bundas enormes, bico dos seios negros e defeituosamente apaixonada por meu ex-avô. De dar pena. Foi internada por amá-lo demais e intolerância dele. Ninguém diz nada lá em casa, mas não achei outro pretexto.
E o alienista que aceitou a internação de vovó, imaginei-o um mal-amado. De uma perversidade do mesmo naipe de vovô. Meu ex-avô. Não havia nada que justificasse o confinamento dela, que o servia na roça. Nas horas do almoço e tudo.
Ô coisa parecida! Ô coisa parecida, Aparecida! Minha mãe me chama, é hora do almoço. E a minha irmã mais nova, longa e preta cabeleireira
Vovó conseguiu sair do hospício, vizinho à igreja dos Remédios, e voltou para a companhia de meu avô. Era doente por meu ex-avô...
Ô coisa parecida! Ô coisa parecid-a, Aparecida! Minha mãe me chama, é hora do almoço. E a minha irmã mais nova, longa e preta cabeleireira. Moço! Moço! Eu ainda sou bem moço pra tanta tristeza... Cuidemos da Vida. Belchior.
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