Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
Eu ia fazer uma narrativa poética sobre o "Passarim Ingulino Jerônimo do Cocó", um filhote caído do ninho e os cuidados da menina Maria Flor, mas não consegui
Há alguns movimentos na existência que não carecemos fazê-los. Talvez o ego atente e, provavelmente, vamos cometer algo dispensável. Mamãe - dona Maria Edmar - é para mim mais importante que o papa Francisco e o Mojica, mas nunca planejei pedir alguma homenagem pública pra ela.
Mereceria. Fez vingar seis filhos sem a necessidade de homem e, muitas vezes, recebendo 60 reais quando se viu sozinha com seis gatos miando por comida e enchendo o saco dela.
Foi uma das fundadoras da Pastoral da Criança nas quebradas da Maraponga. E enchia a casa de gente-com-fome para dividir o que não era abundante. Sempre tinha algo, mesmo na pindaíba.
É a permanência de uma mentalidade branca-abolicionista que ainda se arrasta
Mamãe foi e ainda é "importante" para muita gente, mas nem por isso planejo encostar em algum vereador de esquerda para que uma rua tenha o nome de Maria Edmar. No máximo, e com muito orgulho, um dia faremos uma placa bonita e reinauguraremos o quintal dela.
Pode parecer besteira, mas é incomodo. O governador Elmano de Freitas (PT), no feriado inconsistente da Data Magna, anunciar os nomes dos agraciados da medalha da Abolição e não ter uma negra nem um negro entre os medalhados.
É a permanência de uma mentalidade branca-abolicionista que ainda se arrasta, mesmo depois de 140 anos da tal abolição pioneira do Ceará (1884). Não é caturrice, mas um contraponto ao inconsciente coletivo de 388 anos de cativeiro.
É meio óbvio ou falta informação sobre uma história que precisa ter outras versões
Parece, faltam interlocutores no governo cearense para orientá-lo com lume. E aqui não se trata de simplório revisionismo histórico, mas uma oportunidade que se perde de insistir, por exemplo, no desmantelo do racismo.
É meio óbvio ou falta informação sobre uma história que precisa ter outras versões sobre a existência. Não é mais engolível fazer como João Cordeiro, um abolicionista de primeira ordem que, ao ser eleito governador do Ceará esqueceu a causa abolicionista.
Não implementou nenhuma política de reparação para negras e negros - libertos, mas largados na sobrevivência. E seguiu na mesma marcha da elite branca cearense e brasileira. Na permanência de uma mentalidade de que a "dádiva heroica" já havia sido o Ceará precursor "libertar" a "sub-raça".
Houve festas oficiais pela "abolição cearense", mas não encontramos medalhas para José Napoleão e Tia Simoa
Os "libertadores" e os que fizeram rodar a "Greve dos Jangadeiros" (1881), por exemplo, não eram apenas brancos. E era lógico a elite alva puxar a abolição porque era livre e detinha privilégios sociais e de influência política e econômica.
Houve festas oficiais pela "abolição cearense", mas não encontramos nos livros de História do Ceará nem nos periódicos convites para oferecimento de medalhas ou outros certificados para nomes como José Napoleão e Tia Simoa.
Escrevo o nome dos dois como protagonistas de um movimento coletivo que deu no fechamento do Porto de Fortaleza para o tráfico interprovincial de pretas e pretos (1881). Antes do içamento seletivo do Chico da Matilde.
Por isso me incomoda a permanência da mentalidade abolicionista nos que hoje estão no poder.
A medalha da Abolição, um símbolo positivista dos feitos heroicos de quem arrodeia o poder, poderia encarnar mais esforço contra permanências racistas. E fôlego por reparação histórica na existência de descendentes de quem penou ou foi assassinado nos 388 anos de cativeiro.
É indelicada essa história de brancos continuarem, até hoje, se condecorando pela "abolição"
Os impiedosos 388 anos de sequestro, tortura, escravização e execução de um povo por causa do corpo negro. Foram milhares pretas e pretos africanos e afro-brasileiros...
É indelicada essa história de brancos continuarem, até hoje, se condecorando pela "abolição". É meio "nós-com-nós" Camilo Santana receber de Elmano de Freitas uma medalha. E não se trata de pessoalidades contra nenhum dos "novos libertadores", mas isso nem poético é. Pode ser arrogo de permanência.
Sim, eu ia fazer uma narrativa poética sobre o "Passarim Ingulino Jerônimo do Cocó", um filhote caído do ninho e os cuidados da menina Maria Flor, mas não consegui. Fica para um livro ilustrado.
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