Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
Às vezes, o simples que se faz é desmedido e pode ser contagiante. Beneficia, chacoalha a inércia, tira a aflição de alguém, de algum bicho, de alguma planta, de um rio, de uma criança. Tem um efeito coletivo e bota medo em quem não tem vergonha de ser escroto.
Lúcia Penaforte, em Fortaleza, e Lidiane Silva e a Associação dos Moradores da Praia da Placa, em Icapuí, reinventaram uma das possibilidades de se rebelar contra o que é vil e se mascara de "normal".
As três se sublevaram, em dois enredos distintos, por causa da tentativa de extinção de um pé de manga na metrópole solar e contra o cercamento de um manguezal na outra banda do litoral cearense.
Pois bem, Lúcia, Lidiane e a Associação fizeram coisas aparentemente bestas
Quem era aquela mulher trepada em um muro, a fazer protesto para salvar uma mangueira de um condomínio na Aldeota?
Esta crônica ou sei lá qual gênero enclausuram o texto, aviso, é um desejo de permanência. Que desavoe feito raia cortada no céu ou sirva de discussão, talvez, nas escolas e casas de família (de bem) onde estão formando, cada vez mais, meninos e meninas acríticos, machistas, homofóbicos, misóginos, desmatadores...
Pois bem, Lúcia, Lidiane e a Associação fizeram coisas aparentemente bestas. A primeira, revoltada com a execução do pé de mangueira do edifício Tigipió, passou da reclamação para uma atitude de extrema compaixão com um ser não humano.
É besteira? É não. É cansativo gritar todos os dias contra o corte de árvores sadias
Como ignoraram os pedidos do direito de existir da mangueira, Lúcia desceu da comodidade do apartamento, trepou no muro e impediu o corte da árvore. Somente sairia se o condomínio suspendesse a matança. Ou matassem as duas.
É besteira? É não. É cansativo gritar todos os dias contra o corte de árvores sadias, contra a destruição de matas ciliares e testemunhar áreas verdes no chão por conta de outorgas onerosas e termos de ajustamentos de condutas.
Eu passei a defender que Fortaleza não tenha mais nenhuma árvore. Nenhuma. Todas seriam sacrificadas. E quem ousasse plantar um jardim ou ter jarro nas varanda seria severamente criminalizado. Feito quem é estuprada e tem de ser punida por ser mulher!
Já fundamentei por aqui também que nem o Mar deveria existir na soleira desta cidade monturo
Pra quê tanto matagal? Qual o sentido de Fortaleza manter parques feito o do Cocó e da Sabiaguaba e as construtoras no prejuízo? É absurdo numa cidade ensolarada ainda existirem árvores! Eu acho.
Já fundamentei por aqui também que nem o Mar deveria existir na soleira desta cidade monturo. Se eu fosse o Atlântico já teria criado vergonha na cara e picado a mula, deixado o buraco. "Se eu fosse o mar, eu ia embora daqui".
Mas vem Lúcia Penaforte e, num surto individual e coletivo, desbanaliza a pacatez. A bicha subiu no muro, acionou umas ambientalistas e foi pra cima meio parecido com "O barão nas árvores", de Ítalo Calvino.
Uma ira abençoada que já havia me incomodado no início da semana com Lidiane e o povo do Icapuí
Subiu feito o barão Cosme Chuvasco de Rondó. Saiu do senso comum do protesto de boca e experimentou fazer quem estava embaixo enxergar algo fora do conformismo. Ela mesma teve outra experiência.
Uma ira abençoada (nada de religião) que já havia me incomodado no início da semana com Lidiane e o povo do Icapuí. Foi depois que a empresa Goldoz, de produção de camarão em cativeiro, resolveu cercar uma Área de Proteção Ambiental (APA) e parte de um mangue, em Icapuí.
Os abjetos não têm mais vergonha de agir contra o interesse público e pelo lucro avaro. Já havia escrotidão, lógico, mas tenho saudade de quando o Brasil era antes do ódio inoculado a partir da pandemia bolsonarista.
Há um agradecimento instantâneo do universo pela mangueira que não foi sumida e pela cerca derrubada
Sim, eles já existiam. A hipocrisia e o silêncio determinavam as relações em família e na rua com torturadores, matadores, derrubadores de matas e grileiros de dunas, rios, serras... E deu na barbárie.
Há um agradecimento instantâneo do universo pela mangueira que não foi sumida e pela cerca que a prefeitura de Icapuí foi obrigada a derrubar depois dos protestos.
Movimentos aparentemente bestas, mas de um estrondo incomodante vigoroso. A mesma indignação necessária para destroçar a bruteza do Projeto de Lei do Aborto, que condena mulheres e meninas a um cenário de mais violência.
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