Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
O homem que entrevistei há três anos completará 106 de idade neste abril chuvoso de 2024, em Fortaleza. O primeiro aniversário foi no 24/4, quando rebentou em 1918. Faltam alguns dias ainda, eu sei, mas o dr. Pinho já experimentou 106 secas ou invernos.
Também atravessou mais de duas grandes guerras, epidemias matantes, partos, enterrou ditaduras... E ainda vive, até hoje, um grande amor desde que se casou há 71 anos.
Ele tem 106! Desculpe repetir, mas é preciso, e sua namorada Lúcia tem 90 anos. Inacreditáveis, quase, 200 anos de ancestralidades.
Saíram à procura do mar, erraram os rumos e deram com a inesperada Viçosa do Ceará. Não é ficção. O mundo era tão recente quando se conheceram que nem todas as coisas tinham nomes.
Quis chorar e o rapaz disse-lhe que, se não chorasse, um dia se casaria com ela
Doutor Pinho, um alquimista de farmácia, foi o "médico" de Viçosa por infinitos anos. E quis o inexplicável que testemunhasse Lúcia pela primeira vez, quando a menina tinha 11 anos de idade.
O pai de Lúcia a levou para o consultório de Pinho, na única botica de fórmulas da serra perdida. A menina tinha na cabeça um tumor e ele, com mãos de pardal, sarjou o caroço. Quis chorar e o rapaz disse-lhe que, se não chorasse, um dia se casaria com ela.
Viçosa do Ceará era distante do mar, um topo de precipícios gelados até perto do meio-dia e quando a noite voltava. Tinha outro ínfimo, era um lugar tão cheio de tiês-sangue, corrupiões, canários, azulões e tangarás que havia aldeões surdos de qualquer tipo de civilização.
Doutor Pinho era para Viçosa uma mistura de José Arcárdio Buendía com o cigano Melquíades
Era um oco tão afastado da capital da província que difícil se chegava ali. A não ser os ciganos com as novidades do mundo de fora, um ou outro circo e indígenas não exterminados pelos portugueses, espanhóis, holandeses, franceses e ingleses.
Doutor Pinho era para Viçosa uma mistura de José Arcárdio Buendía - um cientista de família abastada e terras quase sem fim - com o cigano Melquíades. É preciso ler "Cem Anos de Solidão".
E por que digo isso? Foi ele que acabou descobrindo "coisas" para a cidade que quase nevou um dia, mas nunca nevou.
É dele a descoberta, em 1946, de uma chaga grave que dizimou centenas de pessoas no Ceará, principalmente os povos da floresta. O calazar. Doença parida por um mosquito inquilino de casebres na serra.
O calazar e aquele espírito de insistência pela cura levaram dr. Pinho a fundar o primeiro hospital de Viçosa
Na verdade, o flebótomo ou mosquito-palha vivia naquela selva de onças pardas há milhares de anos. Desde que o mundo nem era esse mundo hoje.
O calazar e aquele espírito de insistência pela cura levaram dr. Pinho a fundar o primeiro hospital de Viçosa. Era particular, mas nunca cobrou uma galinha de quem não podia. Reinventava fórmulas, campeava novidades científicas e um dia conseguiu estancar as mortes.
Mas isso já contei numas Páginas Azuis. Era para ter ancorado a crônica no amor mais longevo do Ceará entre Maria Lúcia Fontenele de Pinho Pessoa e Felizardo de Pinho Pessoa.
Sei pouco sobre as intimidades amorosas de Lúcia e Pinho na serra álgida que nunca nevou
Lúcia é uma senhora bem alta, elegante, fala pouco. Pinho um senhor gentil, baixinho, verdadeiramente lúcido e grato por suas 106 vidas, sete filhos, 12 netos e cinco bisnetos. E creiam, ele ainda tem um irmão de 104 anos, o seu João Pessoa.
Sei pouco sobre as intimidades amorosas de Lúcia e Pinho na serra álgida que nunca nevou. Talvez semelhante ao idílio de Úrsula e José Arcádio. Acho que não, pode ser...
Tudo passou a ser superlativo na existência do homem mais vivido do Ceará, que decidiu nunca morrer de velho.
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