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Não sei o que dizer
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Não sei o que dizer

É chato repetir que a escola é um dos espaços onde há violentas disputas dispensáveis, mas é real
Tipo Crônica
0109demitri2 (Foto: Carlus Campos)
Foto: Carlus Campos 0109demitri2

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Quando me sinto sobrando na existência, tenho vontade de retornar à floresta do Cocó. Talvez, lá seja um beco com saída em meio à maldade cotidiana. Um lugar onde a terra ainda descanse, mesmo com tantas bordoeiras dos homens e de mulheres da cidade.

E não é fuga querer se banhar de floresta quando o juízo aperta a cabeça e quer apressar o que não precisa ser vertigem e morte.

Deu vontade de vomitar por causa da pressa com que a vida do adolescente Pedro foi desimportada e impelida a ser retirada dos dias por aqui.

 

Porque fizeram peso nele por ser de cor "divergente", porque sofria mais bullying ainda por ter se descoberto gay

 

Por apenas 14 anos permitiram o adolescente negro viver. Porque fizeram peso nele por ser de cor "divergente", porque sofria mais bullying ainda por ter se descoberto gay. O absoluto mundo machista de definir a vida dos outros.

O garoto Pedro se retirou da pouca existência, tão cheia de verões e apogeus nas primaveras. Pedro Henrique Oliveira dos Santos, um dia, no caminho do Colégio Bandeirante, em São Paulo, quis virar invisível.

Sim, a escola já havia recebido avisos da malvadeza costumeira dos "colegas" de sala de aula e dos corredores... E que absurdo ainda permanecerem escolas - quase todas no Brasil - tomadas pelo medo do aluno existir do jeito que se é!

 

E que escolas são essas que não conseguem tornar "regra" a diferença?

 

Quem dera pudesse todo homem compreender que ninguém é menos porque veio autista, porque pesa mais, porque tem a orelha grande, porque faltam-lhe pernas ou a voz sai de forma estranha. E que escolas são essas que não conseguem tornar "regra" a diferença?

Foi assim quando minha avó estudou, foi também na época de mamãe; passei por isso e meus filhos experimentaram o desgosto de não serem incluídos, em algum momento, por algum extremo de indelicadeza.

É chato repetir que a escola é um dos espaços onde há violentas disputas dispensáveis, mas é real. E que ela acaba ruminando, numa mesma partícula do universo, uma cadeia de perversidades humanas.

 

Conheço um garoto que não pode viver seu autismo. Suas vozes sozinhas 

 

Sim, há suspiros! Mas poucos são as alunas e os alunos que querem retornar à escola às segundas-feiras por prazer abundante. Inventaram que a sociabilidade é uma "guerra" diária e somente assim teremos pessoas "fortes" e "proativas". De uma crudelíssima escassez de poemas e de convivências saudáveis.

Conheço um garoto que não pode viver seu autismo. Suas vozes sozinhas com o vento e as viagens em aeronaves imaginárias por causa da cognição atípica. Virou um tormento voltar das férias. E é porque os "normais" são o que há de comum na ordenação do mundo, mas isso não lhes dá a delicadeza de não matar os dias dos diferentes.

Um dia, vivi a ilusão de que ser macho bastaria. O que tudo pode, o que tudo faz, o que nada respeita, o que puxa o rabo de um bezerro numa vaquejada ou mata um touro numa arena.

Tão salobra lição, tantos meninos e meninas empurrando Pedros para o invisível...

O super-homem não irá restituir a glória, somos nós! E, talvez, a escola com a rua e algumas famílias onde o masculino não se baste tanto.

 

Piegas assim, mesmo, se for para nenhum Pedro entrar na angústia e ser obrigado a virar invisível

 

Dedico o texto a toda possibilidade de ninguém se retirar da vida ou tirá-la de alguém. E ao risco necessário de mergulharmos, por liberdade e sede, ao que é amoroso e pode curar qualquer forma de preconceito.

Piegas assim, mesmo, se for para nenhum Pedro entrar na angústia e ser obrigado a virar invisível.

 

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