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A Justiça não precisa ser negra nem branca
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

A Justiça não precisa ser negra nem branca

A sentença contra o racismo do funcionário da Zara poderá ser didática para quem pretende insistir na quizila colonial
Tipo Crônica
0809demitri.jpg (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 0809demitri.jpg

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Vou tentar fazer uma crônica, mas se tomar corpo de artigo... relevem. É o repórter e o cronista se engalfinhando. Desavença de pouca relevância para o assunto do texto: o racismo. Talvez interessante para quem ainda determine caixinhas cartesianas para os "gêneros" narrativos.

Pois, começo com um elogio à justiça cearense. Por ter o juiz Francisco das Chagas Gomes, da 14ª Vara Criminal de Fortaleza, condenado Bruno Felipe Simões Antônio pelo crime de racismo contra Ana Paula Silva Santos.

Não comemoro a condenação de Bruno, me constranjo como ser vivo pardo. Tenho revoltas por pessoas feito Ana Paula ainda sofrer racismo e a sociedade precisar vigiar quem é racista.

 

É indizível Ana Paula e qualquer outro negro ter de recorrer à justiça para pedir "reparação de constrangimento"


Aquele pacto nojento do contrato social, ou dos marcos civilizatórios, mas necessário tamanha a escrotidão humana perene. Mesmo tanto tempo depois das invasões luso-católicas-europeias e 388 anos de escravização no Brasil.

É indizível Ana Paula e qualquer outro negro ter de recorrer à justiça para pedir "reparação de constrangimento" por ter sido expulsa de uma loja num shopping - no caso a Zara, no Iguatemi de Fortaleza.

O réu, agora condenado, ainda tentou convencer a Justiça de que a repulsa não teve a ver com a cor da pele de Ana Paula. A atitude criminosa de enxotá-la da Zara seria uma prevenção em meio ao segundo ano da pandemia da Covid-19.

 

Os vídeos mostram pessoas na mesma situação ou sem máscara, mas nenhuma foi escorraçada da Zara

 

Ana Paula estava com a máscara abaixada enquanto sorvia um sorvete e caminhava. Mas se o motivo fosse esse, todas as pessoas dali teriam de ter tido o mesmo tratamento. Os vídeos mostram pessoas na mesma situação ou sem máscara, mas nenhuma foi escorraçada da Zara.

E sobre a crítica à Justiça, irei no rumo de que a instituição precisa de um letramento para também desenclaracar o racismo. O entranhamento dessa permanência, sustentada ainda hoje por 388 anos de escravização, é imorredouro.  

Das atitudes "sem intenção" ao preconceito preste a aflorar ou, em algum momento, retirar a jeriza da gaveta. A sentença contra o racismo do funcionário da Zara poderá ser didática para quem pretende insistir na quizila colonial.

 

O réu é condenado, mas há quase uma justificação da suposta "boa intenção" do acusado

 

Haveria um equívoco na argumentação do juiz em relação à vítima e as imagens do crime? Talvez racismo institucional. A argumentação dele é dúbia. O réu é condenado, mas há quase uma justificação da suposta "boa intenção" do acusado por causa de um desvio dos "bons costumes" cometido pela vítima.        

"A bem da verdade, a vítima se conduziu em total desrespeito aos bons costumes e ao Decreto expedido pela autoridade governamental, que regulamentou as medidas de saúde pública durante a pandemia".

"Desrespeitou aos bons costumes porque não é de bom senso sair circulando pelo shopping ao mesmo tempo em que se alimenta, principalmente de um produto que oferece grande probabilidade de cair das mãos e sujar o piso do ambiente, resultando em grande possibilidade de causar grave acidente contra outras pessoas que circulam no mesmo local, e mais grave ainda em face de pessoas idosas".

"Mas não somente isso pode ocorrer. A própria pessoa pode se descuidar enquanto se alimenta e se chocar contra coisas e contra pessoas".

"A vítima desrespeitou também, é evidente, o Decreto governamental que determinava o uso de máscaras naquele tipo de ambiente, e a possibilidade de poder não utilizar a máscara enquanto se alimentava não ensejava a interpretação de que o indivíduo pudesse circular pelo shopping, sem máscara, enquanto tomava um prato de sopa ou um sorvete".

"Assim, quando o Decreto abriu a possibilidade do indivíduo permanecer sem a máscara ao se alimentar em local público, a autoridade governamental conclamou a todos pela utilização do bom senso e dos bons costumes a fim de que pudessem retirar a máscara enquanto se alimentassem, mas desde que em local adequado e mantendo certa distância entre as mesas".

O rechaço à Ana Paula não foi uma atitude do funcionário contra quem estava com a máscara abaixada na loja. Não apenas ela estava assim, segundo as imagens da prova.

Pela lógica, os outros infratores dos "bons costumes" deveriam ter sido enxotados feito a negra Ana Paula.

Como a própria sentença cravou, foi racismo. Não teve a ver com a Covid-19. Foi racismo e ponto.

 

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