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Seu Dico que fedia (ou cheirava) a peixe
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Seu Dico que fedia (ou cheirava) a peixe

A sociedade do andar de cima, que adora se bajular, substituiu o belo Água Fria pelo nome do fundador da Unifor
Tipo Crônica
2807 - Demitri (Foto: Carlus Campos )
Foto: Carlus Campos 2807 - Demitri

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Uma lembrança da infância, dos anos 80, entrou no vão dos meus silêncios enquanto dirigia pela Cidade feia, esburacada e monturos. Talvez porque estava a ouvir a rádio O POVO e uma entrevista sobre o livro "O país dos privilégios", de Bruno Carazza, me fisgou do desvão.

Não li o livro, ainda nem comprei, mas o autor propõe uma trilogia sobre a perpetuação de prendas para quem vive no topo do poder (ou para quem está sempre perto dele) no Executivo, Legislativo, Judiciário e Forças Armadas.

Ao volante do carro, recordava de uma família desprivilegiada que vivia na Água Fria. Uma ocupação de pessoas sem grandes posses, que beirava o rio e as dunas do Cocó. Por sinal, o bairro acabou sendo renomeado para Edson Queiroz.

 

Por ironia, também nas cercanias da Unifor, dona Yolanda Queiroz dá nome a uma comunidade 

 

Não por menos, mas por reverência ao empresário morto no desastre aéreo da Vasp, na serra da Aratanha, em 1982. A sociedade do andar de cima, que adora se bajular, substituiu o belo Água Fria pelo nome do fundador da Unifor - uma universidade construída na "beira" do mangue do Cocó.

Por ironia, também nas cercanias da Unifor, dona Yolanda Queiroz dá nome e alguns serviços a uma comunidade construída no miolo de uma favela, hoje, territorializada pelas facções criminosas.

E é por lá que existiu um pescador que nunca conheceu, enquanto viveu, um desses "privilégios" experimentados pelos que escrevem a história do poder oficial. Imaginar seu Dico? Nunca teve um carro oficial à disposição feito desembargadores do TJCE.

 

Qual a necessidade de pelo menos 68 veículos estarem à disposição de 53 desembargadores e juízes convocados?

 

Seu Dico era pescador de nascença e precisão. Não teve à porta carro algum e motorista, uma ferida privilegiosa que a Justiça cearense não consegue extinguir. Qual a necessidade de pelo menos 68 veículos estarem à disposição de 53 desembargadores e  convocados?

Pela lógica, diferente de seu Dico que só tinha algum dinheiro se o Cocó e o Atlântico lhe oferecessem peixes, os desembargadores que recebem mais de R$ 35 mil reais deveriam ir e vir para o TJCE em carros próprios. Não há desculpa para permanência da regalia. Nenhuma.

Assim também, o barco dadivoso segue em outras repartições públicas. Há carro oficial e motorista para conselheiros no Tribunal de Contas do Ceará, no Ministério Público e firmas do governo do Ceará, na Prefeitura de Fortaleza, na Câmara Municipal e na Assembleia Legislativa. Fora os órgãos federais.

 

Seu Dico, um desprivilegiado da laia debaixo, parecia não ser ninguém quando estava longe do mangue

 

O menos colonial, não menos arrogante, seria apenas o chefe desses "poderes" utilizar um veículo oficial para ir e vir de casa para o trabalho e para missões em serviço. Aqui e no resto do Brasil, incluindo o STF.

Seu Dico, um desprivilegiado da laia debaixo, parecia não ser ninguém quando estava longe do mangue do Cocó, na Água Fria. Viveu sem a esposa da metade de sua vida pra frente, quando a moça resolveu amar outro homem que não fosse do mar.

A tristeza pode até ter devastado os interiores dele, o desamor repentino! Mas continuou a amar o mar. Ou aturá-lo, pois dali era a existência dele e de oito filhos que decidiram terminar de ser criados pelo pescador.

 

É quase impossível essa sociedade dos abastardos largar mão do vício da vantagem criado pelo luso-católico invasor

 

Um apanhador de peixes, negro e pobre, provavelmente com ancestrais escravizados, e que o inexplicável destino o pôs no mangue. Por algum acaso ou dimensão desconhecida, o Universo o fez ser parido ali.

É quase impossível essa sociedade dos abastados - dos desembargadores, dos juízes, dos promotores, dos procuradores, dos conselheiros, dos governadores, dos prefeitos, dos vereadores, dos deputados, de delegados, de oficiais militares, de empresários... - largar mão do vício da vantagem criado pelo invasor luso-católico. Pelo europeu.

Foram 388 anos de escravização no Ceará e no restante do País! Muito tempo, quase quatro séculos de uma elite vivendo do tráfico humano, da tortura e do assassinato de quem foi exaurido no trabalho escravizado.

 

A casa desprovida de seu Dico, toda ela, fedia a peixe. Pra ele cheirava ao mar

 

Há uma perpetuação do privilégio no corpo de quem tem "poder" ou dos que chegam no andar de cima, mesmo vindo do canelau. E o discurso não muda nada. Duvido que por consciência alguém tenha dispensado o carro oficial. Para falar apenas de um apanágio.

A casa desprovida de seu Dico, toda ela, fedia a peixe. Pra ele cheirava ao mar. O chão era cheio de espinhas e ossos de peixes miúdos e graúdos. Milhões de vidas!

As paredes impregnadas de escamas, do futum das raiadas de sangue das vísceras e das guelras dos camurupins, das barbatanas dos pargos e das cavalas que foram rareando com a privatização do entorno do rio e o lixo no mar e no mangue...

 

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