Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
Uma lembrança da infância, dos anos 80, entrou no vão dos meus silêncios enquanto dirigia pela Cidade feia, esburacada e monturos. Talvez porque estava a ouvir a rádio O POVO e uma entrevista sobre o livro "O país dos privilégios", de Bruno Carazza, me fisgou do desvão.
Ao volante do carro, recordava de uma família desprivilegiada que vivia na Água Fria. Uma ocupação de pessoas sem grandes posses, que beirava o rio e as dunas do Cocó. Por sinal, o bairro acabou sendo renomeado para Edson Queiroz.
Por ironia, também nas cercanias da Unifor, dona Yolanda Queiroz dá nome a uma comunidade
Não por menos, mas por reverência ao empresário morto no desastre aéreo da Vasp, na serra da Aratanha, em 1982. A sociedade do andar de cima, que adora se bajular, substituiu o belo Água Fria pelo nome do fundador da Unifor - uma universidade construída na "beira" do mangue do Cocó.
Por ironia, também nas cercanias da Unifor, dona Yolanda Queiroz dá nome e alguns serviços a uma comunidade construída no miolo de uma favela, hoje, territorializada pelas facções criminosas.
E é por lá que existiu um pescador que nunca conheceu, enquanto viveu, um desses "privilégios" experimentados pelos que escrevem a história do poder oficial. Imaginar seu Dico? Nunca teve um carro oficial à disposição feito desembargadores do TJCE.
Qual a necessidade de pelo menos 68 veículos estarem à disposição de 53 desembargadores e juízes convocados?
Seu Dico era pescador de nascença e precisão. Não teve à porta carro algum e motorista, uma ferida privilegiosa que a Justiça cearense não consegue extinguir. Qual a necessidade de pelo menos 68 veículos estarem à disposição de 53 desembargadores e convocados?
Pela lógica, diferente de seu Dico que só tinha algum dinheiro se o Cocó e o Atlântico lhe oferecessem peixes, os desembargadores que recebem mais de R$ 35 mil reais deveriam ir e vir para o TJCE em carros próprios. Não há desculpa para permanência da regalia. Nenhuma.
Assim também, o barco dadivoso segue em outras repartições públicas. Há carro oficial e motorista para conselheiros no Tribunal de Contas do Ceará, no Ministério Público e firmas do governo do Ceará, na Prefeitura de Fortaleza, na Câmara Municipal e na Assembleia Legislativa. Fora os órgãos federais.
Seu Dico, um desprivilegiado da laia debaixo, parecia não ser ninguém quando estava longe do mangue
O menos colonial, não menos arrogante, seria apenas o chefe desses "poderes" utilizar um veículo oficial para ir e vir de casa para o trabalho e para missões em serviço. Aqui e no resto do Brasil, incluindo o STF.
Seu Dico, um desprivilegiado da laia debaixo, parecia não ser ninguém quando estava longe do mangue do Cocó, na Água Fria. Viveu sem a esposa da metade de sua vida pra frente, quando a moça resolveu amar outro homem que não fosse do mar.
A tristeza pode até ter devastado os interiores dele, o desamor repentino! Mas continuou a amar o mar. Ou aturá-lo, pois dali era a existência dele e de oito filhos que decidiram terminar de ser criados pelo pescador.
É quase impossível essa sociedade dos abastardos largar mão do vício da vantagem criado pelo luso-católico invasor
Um apanhador de peixes, negro e pobre, provavelmente com ancestrais escravizados, e que o inexplicável destino o pôs no mangue. Por algum acaso ou dimensão desconhecida, o Universo o fez ser parido ali.
É quase impossível essa sociedade dos abastados - dos desembargadores, dos juízes, dos promotores, dos procuradores, dos conselheiros, dos governadores, dos prefeitos, dos vereadores, dos deputados, de delegados, de oficiais militares, de empresários... - largar mão do vício da vantagem criado pelo invasor luso-católico. Pelo europeu.
Foram 388 anos de escravização no Ceará e no restante do País! Muito tempo, quase quatro séculos de uma elite vivendo do tráfico humano, da tortura e do assassinato de quem foi exaurido no trabalho escravizado.
A casa desprovida de seu Dico, toda ela, fedia a peixe. Pra ele cheirava ao mar
Há uma perpetuação do privilégio no corpo de quem tem "poder" ou dos que chegam no andar de cima, mesmo vindo do canelau. E o discurso não muda nada. Duvido que por consciência alguém tenha dispensado o carro oficial. Para falar apenas de um apanágio.
A casa desprovida de seu Dico, toda ela, fedia a peixe. Pra ele cheirava ao mar. O chão era cheio de espinhas e ossos de peixes miúdos e graúdos. Milhões de vidas!
As paredes impregnadas de escamas, do futum das raiadas de sangue das vísceras e das guelras dos camurupins, das barbatanas dos pargos e das cavalas que foram rareando com a privatização do entorno do rio e o lixo no mar e no mangue...
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