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Coração de macho
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Demitri Túlio é editor-adjunto do Núcleo de Audiovisual do O POVO, além de ser cronista da Casa. É vencedor de mais de 40 prêmios de jornalsimo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. Também é autor de teatro e de literatura infantil, com mais de 10 publicações

Coração de macho

Quando Catherine Ravenscroft passa de infiel para estuprada, o esposo se cura na redenção do machismo ... Disclaimer
Tipo Crônica
0902demitri.jpg (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 0902demitri.jpg

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Entre uma série na Tv e a vida como ela talvez seja, dei conta mais uma vez do bafo do machismo. À espreita e pronto para dissimular.

Ele não arreda. E não estou querendo ser fofo nem angariar comiseração. Ele não oferece sossego, mas o abjuro por vezes. Envergonhadamente ou, talvez, iludido de que algo sistêmico foi enterrado. Difícil.

Antes de continuar, sem rumo definido para a crônica, grafo algumas frases que me assustaram, vindas de um menino de 12 anos para uma mãe. Estava na Redação do jornal e uma fonte me ligou com assombros sobre a lida com um filho macho.

 

"Uma época me senti um bode, as cabritas alheias estavam soltas"
 

 

Falo em "lida com um filho macho" talvez porque minha constelação de a priores e posteriores bugue. Claro, quando fui virando macho, adulterando configurações lá do desconhecido da existência, não sabiaem  qual cria resultaria.

Não poderia falar fino. Não deveria chorar por medo ou emoção qualquer. Uma época me senti um bode, as cabritas alheias estavam soltas. Noutra, tinha dificuldade para me enquadrar no padrão de namorado macho...

Não tinha músculos, não coçava os ovos, não andava à caça de fêmeas para comer e, depois, falar para os outros rapazes sobre os peitos delas, como gemiam, que cor eram os cabelos das intimidades... E sempre tinha sido foda a minha performance...

 

"Você é homem. Afirmava com temor. Tem de aprender a reagir, deixar de ser "bonzinho""

 

Eu precisava ser provedor; estudar; entrar na universidade ou no Banco do Brasil para ganhar dinheiro; casar-se com uma mulher gostosa; ter filhos; um gato; um cachorro, uma mangueira no quintal e, provavelmente, pular cerca quando fosse...

Um dia, mamãe disse que temia eu ser "viado". Por causa de uma discussão besta, em que uma menina me chamou de "bicha", houve um vendaval. Não me lembro o motivo da arenga de rua, apenas do drama que foi eu ter de explicar para as narinas quentes de mamãe por que não baixei o calção e não mostrei a pinta pra menina. Era o certificado!

Você é homem. Afirmava com temor. Tem de aprender a reagir, deixar de ser "bonzinho", largar de fazer tudo que peço. Então, desobedeço? Digo que a senhora, porque veio a mãe, é quem tem a obrigação de ser submetida?

 

"A metralhadora de machismos veio no rastro da proibição de o menino permanecer em grupos no YouTube e na tela do celular"

 

É para eu esperar a senhora botar meu almoço, como fazia para meu pai? Traga-me a toalha... Eu gritar que a culpa sempre será sua... da comida acebolada, que tenho gastura, à hora atrasada por que você não me despertou?

Pois bem, deixa essa parte de minha criação de lado e voltemos às frases que li de um filho para a fonte que me telefonou. "As funcionárias do colégio são tudo arrombadas". "As mulheres são tudo prostitutas". "As feministas reclamam de tudo". "Sou escravo e as mulheres me escravizam". "Mãe, me dá uma agulha que vou furar a minha pinta". "Bom, já que não posso fazer nada, vou estuprar".

A metralhadora de machismos veio no rastro da proibição de o menino permanecer, sem controle, frequentando grupos no YouTube e na tela do celular. De toda espécie de influenciadores, de extremistas, de supremacistas e os quilos de preconceitos naturalizados em piadinhas, memes e receitas antigas. Feito um acervo de perfis como André Fernandes.

 

 

 

Parece desconexo, mas vou dar outro cavalo de pau na crônica. Embrenho-me numa frase síntese da minissérie "Disclaimer", da Apple Tv.

É de Catherine Ravenscroft, personagem de Cate Blanchett, o resumo da crônica sobre uma das facetas do machismo. Não copiarei do jeito que é.

É assim, depois de ser massacrada por causa de uma acusação de infidelidade, Catherine não perdoa o marido quando, finalmente, a "verdade" revela um estupro em vez de uma traição.

 

"Para Robert era insuportável a dor da traição e o estupro cicatriza o coração do macho"

 

O esposo, Robert Ravenscroft, depois de sacaneá-la do jeito que fazemos, depois de expô-la, de expulsá-la de casa e condená-la ao silêncio de não ser ouvida, escuta de Catherine a negativa.

Quando Catherine passa de infiel para estuprada, o esposo, ligeiro, se cura na redenção do machismo. Para Robert era insuportável a dor da traição e o estupro cicatriza o coração do macho.

"Você está aceitando a ideia de eu ter sido violentada por alguém, de eu ter sido estuprada, com muito mais facilidade do que a ideia desse alguém me dando prazer".

E assim vamos nos criando e permanecendo machistas... Não importa o homem.

 

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