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Amor perenal
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Demitri Túlio é editor-adjunto do Núcleo de Audiovisual do O POVO, além de ser cronista da Casa. É vencedor de mais de 40 prêmios de jornalsimo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. Também é autor de teatro e de literatura infantil, com mais de 10 publicações

Amor perenal

O matrimônio mais longevo do mundo estaria em Boa Viagem. Virou notícia a perenidade desejada!
Tipo Crônica
Pica-pau-ocráceo (celeus ochraceus), uma das quatro espécies de pica-pau que habita o Parque Estadual do Cocó. Imagem colhida na trilha da Lagoa, em 16/2/2025. Fortaleza-Ceará. 2025   (Foto: Demitri Túlio)
Foto: Demitri Túlio Pica-pau-ocráceo (celeus ochraceus), uma das quatro espécies de pica-pau que habita o Parque Estadual do Cocó. Imagem colhida na trilha da Lagoa, em 16/2/2025. Fortaleza-Ceará. 2025

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O amor talvez seja a oportunidade de me embrenhar entre muitas interrogações na floresta insistente do Cocó. Uma mata depauperada, acuada em parque para os homens não a subjugarem mais ainda. Ultimato protetivo e de emboscar a extinção no bioma engolido pela Cidade insustentável.

Posso dizer da intimidade com a boscagem manguezal porque já fui íntimo por mais de dez anos de permanência e espreita. O amor cuida, rola na lama, transa nas salinas velhas e demarca, com o deleite, os troncos.

O amor é habitat, provavelmente, da vontade de sempre estar na condição de noviciado, um tirocínio paciente que mais escuta do que refuta; e não devolve para o afeto a culpa. Talvez! Gosto tanto dos talvezes.

 

"Na trilha das samambaias aquáticas, os pés de araticuns estão dando muito"

 

Tive a sensação de ser tomado por um apaixonamento quando, susto, me vi olhado por um pica-pau-ocráceo. Foi há poucos dias, apesar de tanto tempo de relação com a mata. Ele me fotografava com os olhos e luz desconfiada, um macho com o malar de penas encarnadas.

A fêmea também observava enquanto dava de comer a um filhote, regurgito no bico em uma tora úmida de um mangue preto alagado na trilha da Lagoa. Acompanhava-me em desvelo, meus movimentos, minha falta de penas e as narinas peludas de um ser estranho.

A ausência de asas em minhas costas deve ter intrigado os três pica-paus de cor ocre. Pintas pretas na casaca amarelada e um topete de guerreadores quando o perigo valentea. Na trilha das samambaias aquáticas, os pés de araticuns estão dando muito. Doce e azedo de enlouquecer as línguas dos sanhaçus.

 

"Amar talvez seja mais escorreito, porém imperfeito num (des)comum aceso"

 

Os pica-paus devem ter se espantado com minhas patas marrons em botas, minha cor jeans, o peito embranquecido no algodão e um azul acessório pendurado ao corpo bípede. Uma estranheza, três olhos! Dois na cara e um que ia e vinha na lente invasiva.

Os humanos, provavelmente, metem receio nos pica-paus e outros bichos. São criaturas gigantes e dentadas, ruidam alto, produzem sons estranhos e há daqueles que soltam pedaços enquanto se descartam na mata, no Lago das Ninfeias e no rio até o Atlântico.

Era sobre o amor a crônica, perdi-me. Escreveria se não fosse aperreio de não saber, tudo cabe. Amar talvez seja mais escorreito, porém imperfeito num (des)comum aceso.

Amar é procurar o que é da gente e inquieta. Desmedido mar.

Recebi e, mais ou menos, transcrevo Chico Bosco. O amor quer uma coisa, o desejo quer outra. O amor gosta de intimidade, do ninho. O desejo gosta do desconhecido, de asas. O amor fica o tempo todo, dentro de uma relação, tentando aumentar a margem da intimidade.

 

"Li no jornal um casamento cearense de 84 anos de duração. Um recorde entre humanos com direito ao Guinness Book"

 

Agora, se o amor consegue tudo que ele quer, ele anula completamente a dimensão desconhecida do outro. E aí, o desejo fica completamente satisfeito. O desejo exige o oposto do amor. Os dois parágrafos são do Chico Bosco.

Fico de me pensar, em quase todos as vidas rebrotadas, sobre as relações entre amantes. Seus percursos, menos os destinos.

Li no jornal um casamento cearense de 84 anos de duração. Um recorde entre humanos com direito ao Guinness Book e fotografias para o Instagram.

Talvez amor. Desejo que sim e acredito no columeio possível até fim. Manoel Angelim Dino de 105 anos e a companheira, Maria de Sousa Dino, de 101 existências. O matrimônio mais longevo do mundo estaria em Boa Viagem. Virou notícia a perenidade!

E, talvez, o amor mais duradouro entre não-pica-paus-ocráceos.

 

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