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O rapaz da ambulância de Quixeré
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Demitri Túlio é editor-adjunto do Núcleo de Audiovisual do O POVO, além de ser cronista da Casa. É vencedor de mais de 40 prêmios de jornalsimo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. Também é autor de teatro e de literatura infantil, com mais de 10 publicações

O rapaz da ambulância de Quixeré

Lembrei de uma amiga desenganada pelo câncer, ainda moça repórter, no Monte Klinikum
Tipo Crônica
Demitri 02.02 (Foto: Carlus Campos)
Foto: Carlus Campos Demitri 02.02

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Seguinte, deu no Instagram do @monolitospost: "motorista de ambulância realiza desejo de paciente acamado há oito anos".

É um curta, ficção. Ou argumento fílmico do Teerã! É da Caatinga florescente daqui mesmo. Pura flor de brandura.

No dia 17 de janeiro, José Lopes, de 87 anos, que há oito anos está acamado por questões de falta de saúde plena, teve a oportunidade de visitar uma barragem significativa para a juventude dele, no município de Quixeré, no Ceará.

 

"Por compaixão, leia-se ternura ou compadecimento com um trisco, que seja, para soprar a dor do outro"
 

 

A afabilidade foi realizada pelo motorista de ambulância Alysson Nunes que, ao conversar com o paciente, descobriu o desejo de José em conhecer a nova barragem da região.

Alysson havia sido designado para levar José ao hospital e realizar exames, mas sensibilizado pela história que ouviu do idoso fez um desvio no caminho. Para que ele pudesse reviver memórias.

Por compaixão, leia-se ternura ou compadecimento com um trisco, que seja, para soprar a dor do outro. Benfazer.

Da maca, o paciente pediu para tocar melodiosas que chamam os ventos, as relembranças e até a chuva. Pediu somente que as águas se precipitassem quando ele estivesse no hospital. Só leblinasse.

 

"O Atlântico banhar a capital, todos os destinos e acasos, e remoer saudades"

 

Barragem, nos matos do Ceará, significa semelhante ao orgulho de Fortaleza ter um mar galático das estrelas. Outro planeta. O Atlântico banhar a capital, todos os destinos e acasos, e remoer saudades para quem vai embora para Minas, para o Rio Grande do Sul e para São Paulo.

Barragens medonhas, também chamadas de açudes grandes e mares do sertão, têm muito mais cartaz que o prefeito, o padre, a juíza, o promotor de Justiça e a delegada.

Açude para quem é do interior cearense significa tucunaré, piau, cará, traíra, muçum, curimatã. É também morada avoante de garça-grande-branca, socozinho, martim-pescador, gavião-caramujeiro, casaca-de-couro-da-lama, socoí, mergulhão e pernilongo-de-costas-negras...

 

"Pois José Lopes, aos 87 anos de existência, se desmanchou em recordações"

 

É desfile para cobras jibóias nuazinhas na prainha de areias alvas, das jaguatiricas no cio e peitos inchados, dos namorados e dos casamentos. Das juras de açudes eternos e esperar pela sangria dos peixes das nuvens. Rios voadores no inverno.

Pois José Lopes, aos 87 anos de existência, oito deles numa cama de adoentado, se desmanchou em recordações. De quando era menino e se banhava nas águas ferrugens do rio Quixeré, no Jaguaribe bonito.

Teve lembranças e viu incubado no corpo engelhado, o mapa de Flores, do Arraial, do Cabeça Preta, do Tomé e de São Raimundo. Lembrou da avó, que nem a minha mãe, Edmar, plantava as sementes e um quilo de açúcar nas covinhas de quem iria nascer flora em beira de açude.

 

"A coroa de flores de plástico, no topo do cruzeiro, lembrava o injucundo submerso"

 

Mangas dulcíssimas do perímetro, limoeiros que davam goiabas brancas, bananeiras onde brotavam jacas, cajaranas que já vinham com sal na carne... uma infância de banhos de barragens e livramentos de muitos afogados.

Um cenotáfio aqui ou acolá, perto da parede do banhado. Afoitaram-se e encontraram o corpo depois de dias de agonia. A coroa de flores de plástico, no topo do cruzeiro, lembrava o injucundo submerso.

Recordou de Tristão Gonçalves, de Ana Triste, e da Jaguaribara velha inundados pelo Castanhão. E também da procissão, tout le jour, das almas da cidade submersa na floresta afogada, até hoje viva, quando a seca à tona das funduras do precipício dinamitado.

 

"Teve um vento nos olhos, um cheiro de terra de peixe, lama de açude e ouviu o junco assobiando"

 

Teve felicidade por causa de Alysson Nunes, o motorista da ambulância que desviou a vida para que José visse a barragem de Quixeré. Há oito anos não movia sozinho o corpo desidratado.

Teve um vento nos olhos, um cheiro de terra de peixe, lama de açude e ouviu o junco assobiando. Fechou os olhos e se imaginou sem maca, sem furos, sem doses e gasturas. Quase pediu para lhe botarem em alguma pedra e molhar os pés no Quixeré.

Mas não! Poderia se arriscar pular e afundar no que não tem volta. Os açudes secam na seca, mas não têm fim. Toda mulher carregadeira de águas sabe, todo jumento abandonado teve um pai e uma mãe que carregaram águas para os humanos.

 

"A outra amiga não lhe negou. Beijou-a"

 

Lembrei de uma amiga desenganada pelo câncer, ainda moça repórter bonita, no Monte Klinikum. Mesmo em seus derradeiros, não pediu para ver o mar. Desejou chocolate. Levaram-lhe uma caixa escondida do hospital.

Suspirou, já nas despedidas, por um beijo na boca de uma amiga. Era apaixonada há tempos e nunca se declarou na Redação. A outra amiga não lhe negou. Beijou-a.

 

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