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O corpo ao avesso
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Demitri Túlio é editor-adjunto do Núcleo de Audiovisual do O POVO, além de ser cronista da Casa. É vencedor de mais de 40 prêmios de jornalsimo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. Também é autor de teatro e de literatura infantil, com mais de 10 publicações

O corpo ao avesso

Você nunca passou essa vontade! Acho que veio no corpo errado, era para ter vindo alado, passageiro. Aquieta!
Tipo Crônica
1901demitri.jpg (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 1901demitri.jpg

O corpo ao envesso talvez seja o retravo de tudo e o tempo a partir de menos um. Negativo sem ser a categorização, senso comum, do doce ou fel. Aqui, a peleja de não se reiniciar cartesiano. Retroceder não no sentido de se desistir por causa de agouro ou vaticínio. Não é sobre o futuro e, sim, sobre os instantes e, talvez, o presente.

Admito, começo empolada a crônica. Tateando porque não encontrei ainda nem o lúcifer para mim, mas incômodos. E veio de um combinado de estímulos no corpo, no cérebro e no intestino. Lúcifer, antes que me empalem, é o fósforo, vênus incandescente, o Heósforo.

O torvelinho de lampejos veio da chuva alagante (em mais um ano) na Heráclito Graça e o Pajeú; de minha mãe em derretimento, mas ainda um Porto do Mucuripe para meus barcos de papéis; da demanda por dinheiro em looping infinito; e da falta que faz uma mulher prefeita da Cidade ou governadora do Estado. Chega de machos!

 

"Madame X é uma incomum pirata das galaxias florestais do planeta em afundamento"
 

 

Deu vontade de sair correndo, sem os freios nem os arreios dos equinos subjugados e pedir para ser parte da tripulação do navio lésbico de "Madame X".

Madame X é uma incomum pirata das galaxias florestais do planeta em afundamento, personagem contraditória e fabulosa de um filme alemão que adoro a primeira meia hora, de 1978, dirigido por Tabea Blumenschein e Ulrike Ottinger (Fílmica).

Ela tem como fulgor tomar o controle dos mares da China, uma alegoria alucinante avessa ao poder falocêntrico. Para isso, Madame X convoca mulheres de todos os tipos físicos e etnias para formar uma tripulação lésbica capaz de conseguir o triunfado.

 

"Ela, em certa altura de suas ilusões, poderia ter mandado meu pai à merda"
 

 

É louco porque, de solavanco, recordei de mamãe. Também transfabulei com Diadorim e a frouxura machista de Riobaldo.

Na película alemã, as mulheres são surpreendidas por um convite de descaminho pelo inverso.

É o que desejei para mamãe, um dia, quando me fiz homem adulterado como todo mundo e abracei a desilusão necessária. Ela, em certa altura de suas ilusões, poderia ter mandado meu pai à merda, deixado os seis filhos para lá e embarcado no navio de Madame X.

 

"E todos os dias fazia a mesma coisa... esperava pelo provedor de tudo, por seus gritos, por um sexo que foi se tornando sovino"

 

Claro que sim! Imagine, foi levada como quase todas as mulheres da geração dela a se casar, sair do emprego, deixar de estudar, embuchar por décadas seguidas, ficar em casa e aguentar uma sogra, um sogro e, ainda, minha bisavó.

E todos os dias fazia a mesma coisa... esperava pelo provedor de tudo, por seus gritos, por um sexo que foi se tornando sovino, um orgasmo culposo e escasso.

Cozinhava, varria a casa, pensava na escola da meia dúzia de rebentos, preocupava-se com o doméstico e nos preparava, com a melhor das intenções, para o mundo. E assim deveríamos repetir a bordo de um fusca e uma casa sempre em despejo.

 

""Meu filho!". Ela ainda não deslembrou mim, apesar da moléstia do apagamento da memória"

 

Mas não há lamúrias! Há algo que me murchou e, ao mesmo tempo, inchou de prazeres. Cheguei, de repente, à casa e à mangueira plantadas por mamãe. Ela enterrou um quilo de açúcar no caroço.

"Meu filho!". Ela ainda não deslembrou mim, apesar da moléstia do apagamento da memória que a consome sem dó.

"Você aqui, assim?". Tinha faltado o último plantão com ela, o penúltimo e o antepenúltimo. Meu irmão Breno me substituiu. Fiquei silente, minha cabeça encostada na dela, quieto. "Algum problema?", ela leu a inquietude. Sempre o fez com feitiço.

 

"E ficamos calados por alguns segundos quase infinitos. Quis chorar, quis pedir alguma desculpa"

 

Não, mãe. Só uma vontade de voar. "Você nunca passou essa vontade! Acho que veio no corpo errado, era para ter vindo alado, passageiro. Aquieta!". Fiquei assustado com o amiúde de mamãe.

E ficamos calados por alguns segundos quase infinitos. Quis chorar, quis pedir alguma desculpa. Desejei que fosse ainda feliz, apesar do vestido insistente que não troca nunca. Do sutiã sempre arrebentado nos seios ainda maiores e cada vez mais bonitos.

Por alguns instantes, vi mamãe se despedindo. Seria mais feliz. Ou aumentaria minha culpa de não paparicá-la ainda vivinha e minha ausências.

 

"Quem manda nas minhas águas sou eu?"

 

Soltamo-nos um do outro, perguntei pelo banho dela. Irritou-se e vi mamãe voltar a ela. "Chegou o dia em que vocês, depois de grande, me cobram banhos. Quem manda nas minhas águas sou eu?". Se a senhora quiser, me asseio com a senhora. "Não. Como se eu não me lavasse. Isso é fofoca daquela. Manda ela lavar o tabaco dela". Ri cínico e pronto.

Cara leitora e caro leitor, faltam amarrações para encaminhar o último parágrafo desta crônica. Talvez não tenha fim e valham outras. Vou ficar por aqui com o que veio e me tomou. Aquele lugar, o ar, primeiro fiquei sabendo que gostava de inchar, de amor mesmo... Foi de repente que aquilo se esclareceu...

 

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