Um louco encontra um amigo e diz: "eu sou Napoleão". O outro responde: "que história é essa. Você está louco? Quem te disse isso?". O primeiro devolve: "ora essa, foi Deus". O segundo se assusta: "Eu?". Quem contou essa piada, entre muitas risadas, foi João Donato, pianista, cantor e compositor reconhecido com um dos pilares da MPB e da bossa nova. Para o acreano radicado no Rio de Janeiro, essa é uma boa forma de ilustrar seu primeiro encontro com Jards Macalé em disco. "A gente dá graças a deus ser um pouquinho maluco", afirma com orgulho.

Amigos há décadas, nem eles lembram há quanto tempo, Jards Macalé e João Donato nunca haviam se encontrado em estúdio. O convite veio quando o primeiro estava em Nova York, gravando um trabalho em homenagem a Zé Keti, e encontrou Pepê Monnerat, do selo Rocinante, que jogou a ideia. "Gostaria de ter dado essa ideia, mas nem foi preciso", afirma Jards. Batizado como "Síntese do Lance", o disco foi gravado ao longo de alguns dias - Jards diz duas semanas, Donato diz que foi uma - em Petrópolis, no Rio de Janeiro. "A gente acordava, ia pro estúdio, parava pra almoçar, dormia um pouco. Era uma coisa sem muito horário fixo, bem prazerosa e o resultado saiu bem com essa cara", acrescenta Donato.

E é também de Donato a primeira impressão do disco: "Não é um disco espetacular, mas é um disco gostoso. O que é até melhor", comenta antes de discorrer sobre o que é espetacular e o que é um bom disco. "Tinha um piloto (de avião) do Acre que passava por baixo da ponte, no lugar de passar por cima. Isso era espetacular", exemplifica antes de voltar ao tema da maluquice. "O Macalé leva esse apelido de meio maluco e eu também. Ele já pulou da barca Rio-Niterói e eu joguei meus discos da Igreja da Glória. É isso, a pessoa normal (quando tem um problema) vai pra casa, fica triste e tudo bem. A gente não, a gente quer uma certa vingança. O nosso disco é muito bom por isso, por que somos dois maluquinhos e isso dá muito samba".

Entre o "muito bom" e o "espetacular", "Síntese do lance" marca um encontro divertido entre duas figuras fundamentais da música brasileira. Embora sejam compositores que passeiam por muitas influências, o som que domina aqui é a bossa e o piano cheio de latinidade de Donato - que já fica evidente na faixa de abertura, "Coco-Táxi", primeira parceria deles. Os graves de Macalé enchem de melancolia o samba-canção "Ontem e hoje", e a faixa-título é "um pontosinho de macumba gostosinho de ouvir", como define Donato, que dedica a faixa a Zé Pelintra. E ambos também abrem espaço pra celebrar suas esposas. O tema instrumental "Dona Castorina" é uma homenagem a Ivone Belém, casada com Donato há 22 anos, enquanto a balada pop "O amor vem da paz", primeira parceria de Macalé e Ronaldo Bastos, é dedicada a Rejane Zilles.

A propósito, foi das esposas a ideia de colocar os músicos nus na capa de "Síntese do lance". "Depois que eu nasci, foi a primeira vez que eu tirei foto pelado", revela o pianista de 87 anos. E Macalé, 77, dá a dica: "Quando você vir (a capa), vê de cabeça pra baixo. São dois estranhos frutos. Na hora de fazer, ficou aquele tira ou não tira. O João olhava e dizia: 'constrangedor'".

Vestidos ou não, eles já planejam os próximos projetos. João Donato está envolvido com mais um disco em parceria, dessa vez com João Bosco. "Eu ia fazer com o Belchior, mas ele sumiu", revela. E Jards está acompanhando a gravação do tributo "à la Macalé" a Zé Keti, feito a convite do percussionista Sergio Krakowski, brasileiro radicado em Nova York. Os shows de "Síntese do Lance" devem ficar pro mês que vem, começando pelo Sesc Pompeia, em São Paulo, segundo Donato. Até lá, eles seguem com seus projetos pessoais. João vem ouvindo suas 1600 fitas cassetes, garimpando gravações antigas, suas e de amigos. E Jards, depois de enfrentar alguns problemas de saúde, está recuperado e vem se destacando nos campeonatos caseiros de Ping Pong. "Tem taça e tudo", orgulha-se.

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Jards Macalé e João Donato - Síntese do lance

Produção de Marlon Sette, Sylvio Fraga e Pepê Monnerat
Selo Rocinante
10 faixas
Disponível nas plataformas digitais

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Um a um

Quem?

Macalé - Jards Anet da Silva, Rio de Janeiro (RJ), 3 de março de 1943
Donato - João Donato de Oliveira Neto, Rio Branco (AC), 17 de agosto de 1934

O disco anterior

Macalé - "Besta Fera" (2019) apresenta canções inéditas de Jards depois de décadas.
Donato - "Sintetizamor" (2017), parceria dançante de Donato e Donatinho, seu filho.

Um clássico

Macalé - O álbum de estreia (1972), com faixas como "Farinha do desprezo" e "Mal secreto".
Donato - "A bad Donato" (1970), que mistura de bossa, funk e outras experimentações.

Uma indicação

Macalé - "Real grandeza" reúne parcerias de Macalé e Wally Salomão (1943-2003) e convidados como Adriana Calcanhoto, Luiz Melodia e Maria Bethânia.
Donato - Encontro instrumental de Donato e Paulo Moura, "Dois panos pra manga" (2006) conta com músicas de João de Barro, George Gershwin e outros.

Uma parceria

Macalé - "Dobrando a carioca" (2016) é um feliz encontro ao vivo de Jards, Zé Renato, Moacyr Luz e Guinga.
Donato - O disco que Donato dividiu com Emílio Santiago, em 2003, é uma aula de suingue e interpretação.

Uma curiosidade

Macalé - Celebrando a declaração dos direitos humanos, "Banquete dos mendigos" reuniu um time valioso de músicos em 1979. Lançado na íntegra em 2015, pela Discobertas.
Donato - A coleção "Songbook", da gravadora Lumiar, faz um bom apanhado da obra de Donato em versões inéditas com diversos convidados.