Marcos Sampaio é jornalista e crítico de música. Colecionador de discos, biografias e outros livros falando sobre música e história. Autor da biografia de Fausto Nilo, lançado pela Coleção Terra Bárbara (Ed. Demócrito Rocha) e apresentador do Programa Vida&Arte, na Nova Brasil FM
A revista americana Paste elegeu os 300 melhores discos da história a partir da opinião de seus funcionários. Entre Stevie Wonder e Outkast, dois brasileiros entraram na seleção: "Clube da Esquina" e "Acabou Chorare". Com diferentes representações de um mesmo país, veja em que esses discos se aproximam e em que eles se diferenciam
Para o crítico Matt Mitchell, a obra icônica da turma mineira é “retumbante”, “única”, “com guitarras escaldantes” e influências que vão “de Beatles a Chopin”. Presença recorrente em diferentes listas de melhores álbuns, o álbum duplo lançado em 1972 – que ganharia uma continuação seis anos depois – ocupa o nono lugar da lista da Paste.
A história do álbum já é bem conhecida: Milton Nascimento, carioca de nascença e mineiro por opção, vivia na casa da família Borges, em Belo Horizonte. Ele já havia gravado duas composições do amigo Lô Borges, quando o convidou para dividirem um disco inteiro. Lô mal tinha 20 anos, era fã de Beatles e vivia na esquina de casa tocando violão. Milton, 10 anos mais velho, já havia vencido um festival, gravado um disco nos EUA e tinha Elis Regina e Agostinho dos Santos entre seus intérpretes.
O passo seguinte foi reunir o Clube. Beto Guedes, Nelson Angelo, Toninho Horta, Robertinho Silva, Tavito, Wagner Tiso e Gonzaguinha foram alguns dos presentes. Um tempo antes, Milton viu Alaíde Costa cantando na TV o samba “Me deixa em paz” em uma versão arrastada e melancólica, ao contrário do original cantado de forma festiva. Impressionado, ele convidou a carioca para o disco também.
Além da força do coletivo, a capa do “Clube da Esquina” também se tornou icônica. Um Brasil ingênuo, interiorano, sorridente e tenso, miscigenado representado numa foto que o pernambucano Cafi fez de dois garotos sentados num barranco de Nova Friburgo (RJ). Tonho e Cacau ficaram famosos sem saber e depois abriram um processo por uso indevido de imagem, mas perderam sob justificativa de que a acusação havia prescrito.
Mas nada é mais forte no disco do que a mistura de samba, bossa nova, música sacra e erudita, jazz, rock... O ritmo de “Cravo e Canela” e os agudos de “Os povos”; a urgência de “Nada será como antes” e a docilidade de “O trem azul”; o arranjo dramático de “Um gosto de sol” e o pop psicodélico de “Trem de Doido”. Com cada detalhe medido pelos maestros Lindolfo Gaya (direção musical), Wagner Tiso (orquestração), Eumir Deodato (orquestração) e Paulo Moura (regência), “Clube da Esquina” é uma obra reconhecida pela riqueza sonora, pela delicadeza dos arranjos, pela beleza dos detalhes. Um disco feito para ser descoberto aos poucos.
Na 51ª posição a Paste Magazine, o segundo do disco dos Novos Baianos é quase um retrato oposto do que o Brasil era naquele momento. Era governo Médici, quando o aparato repressivo da ditadura militar já havia instalado um clima de terror para qualquer pessoa que ousasse pensar ou agir contra o governo.
Na mais absoluta contramão desse tempo nublado, um grupo de cabeludos maconheiros (com orgulho!) abriu o coração para as brasilidades. Uniram tudo com rock, blues, solos lancinantes e criaram uma obra feliz, colorida, positiva, solar. O que entre os mineiros era medido e pensado, entre os baianos era puro feeling e espontaneidade. O que no “Clube da Esquina” é sagrado e etéreo, em “Acabou Chorare” é profano e festivo.
A força do coletivo também é uma marca aqui. Sem muitos arrodeios, os arranjos de Pepeu Gomes e Moraes Moreira misturam pandeiro, cavaquinho e agogô com guitarra, baixo elétrico e bateria numa amálgama tão original que segue fazendo escola há mais de 50 anos. E nada representa mais esse coletivo amalgamado do que a capa original do LP: pratos, copos, talheres, restos de comida sobre uma mesa iluminada pelo sol. Um retrato da vida comunitária, uma pós-santa ceia hippie.
A história de “Acabou Chorare” também é famosa. A banda ainda buscava uma identidade quando João Gilberto, conterrâneo de Galvão, lhes apresentou o samba de Assis Valente. Era a chave que faltava para libertar o Brasil que estava preso na cabeça dos Novos Baianos. Juntando ainda as letras surrealistas que retratavam o amor pelo futebol e o desapego a formalidades, contratos, obrigações, relógios, eles fundaram um novo país através da música.
De Valente, eles escolheram “Brasil Pandeiro” para abrir o disco. Do samba, eles passam para “Preta Pretinha”, que assim como o famoso “Bolero”, de Maurice Ravel, ganha corpo e volume ao longo de muitos minutos. Tem “Tinindo Trincando” e “A menina dança”, rocks com cara de escola de samba. Diferente de “Swing de Campo Grande” e “Besta é tu”, sambas cheios de personalidade, mais tradicionais. Mas a obra-prima segue sendo “Mistério do Planeta”, com letra filosófica sobre o passar do tempo.
Se a maturidade do canto de Milton é o ouro do “Clube da esquina”, a ingenuidade da voz de Baby é algo que emociona pela delicadeza. Junto dela, o fraseado ágil de Moraes, a experiência dos bailes Paulinho Boca de Cantor, a influência de Jimi Hendrix, Jacob do Bandolim e Garrincha na guitarra de Pepeu Gomes e a cabeça privilegiadamente tropicalista de Luiz Galvão. Na cozinha, Dadi, Jorginho, Baixinho, Bolacha e outros malucos que apareciam no pedaço. “É um álbum que não para de elogiar suas próprias partes móveis, uma máquina bem lubrificada bordada com alegria e romance inebriantes”, nas palavras do crítico Matt Mitchell, da Paste.
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