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As (in)conveniências da cultura
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Professor de História na rede pública Estadual de Ensino do Ceará. Doutor em História pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa Patrimônio e Memória (GEPPM-UFC) e vice-líder e pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisa História, Gênero e América Latina (GEHGAL-UVA)

As (in)conveniências da cultura

E se deixássemos de ser carpideiras dos cadáveres de invasores coloniais celebrados em praça pública e olhássemos para as riquíssimas memórias que habitam o cotidiano e a casa dos sujeitos invisibilizados pela história oficial?
Cinemateca em São Paulo já havia sido atingida por incêndio em 2016 e por enchente em 2020 (Foto: Redes Sociais/Reprodução)
Foto: Redes Sociais/Reprodução Cinemateca em São Paulo já havia sido atingida por incêndio em 2016 e por enchente em 2020

Museu consumido pelo fogo, cinemateca virando cinzas, construção símbolo da arquitetura moderna brasileira integrando a lista de imóveis que será oferecida a investidores, teatro desmoronando, edificações centenárias demolidas na calada da noite ou sendo desconfiguradas à luz do dia. Seja em Fortaleza, na cidade do Rio de Janeiro ou na capital paulista os casos citados fazem parte de um mesmo cenário caótico e desolador que confirma o estado de descaso e a política de desprezo pela cultura no Brasil.

Enquanto o fogo ou a marreta minam os esforços de documentação e de preservação da nossa memória e da nossa história vamos perdendo uma herança incalculável, além da oportunidade de explorar bens de valor inestimável para a promoção e desenvolvimento econômico da sociedade.

A história nos ensina que não é novidade essa relação entre as esferas cultural e econômica ou cultural e política, assim como indica que elas nem sempre firmaram acordos isentos de problemas e contradições para investimento naquilo que se entende por cultura ou o que é feito em nome dela. O decreto presidencial publicado no Diário Oficial da união de 27/07/2021, por exemplo, que estabelece a sistemática de execução do orçamento do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), aponta a tendência de definir cultura e bens culturais de acordo com as concepções estéticas e crenças religiosas dos gestores de ocasião. Definição tão rígida e esquemática não poderia estar mais deslocada da realidade.

E se a utilização política da cultura com interesse clientelista cedesse lugar a uma cultura política realmente sensível aos elementos de gênero, raça e classe? E se deixássemos de ser carpideiras dos cadáveres de invasores coloniais celebrados em praça pública e olhássemos para as riquíssimas memórias que habitam o cotidiano e a casa dos sujeitos invisibilizados pela história oficial?

Expandir a compreensão estrita do termo cultura e ampliar as fontes de fomento, sem converter bens públicos em propriedade privada, pode fazer surgir políticas culturais capazes de fortalecer nosso tecido social. Por mais esgarçado que seja, ele serve de base para melhorar as condições sociais e estimular o crescimento econômico através de projetos de desenvolvimento urbano pela via do turismo cultural, do artesanato, do patrimônio; formar e capacitar produtores de arte e cultura que, por sua vez, alimentam consumidores e comunidades. Enfim, reconhecer a cultura como catalisadora do desenvolvimento humano e entender que as expressões culturais são simbólicas, mas também ocupam espaços físicos com propósitos políticos que são reais.

Já que a noção de cultura como recurso pressupõe seu gerenciamento, as políticas públicas efetivas só se fazem com orçamento. Porém, o que acontece com o orçamento público federal para a cultura no Brasil é que ele segue diminuindo ano a ano e, ainda assim, nem sempre é executado, como ficou demonstrado pelo mais recente painel de dados produzido pelo Observatório Itaú Cultural que apresenta um panorama econômico dos setores cultural e criativo brasileiros por meio de três eixos de análise: Mercado de Trabalho e Empreendimentos, Gastos Públicos com Cultura e Comércio Internacional.

Existem muitas formas na sociedade contemporânea de se buscar desenvolvimento econômico e a cultura é uma delas, pois sua função vai além da materialidade, sendo uma das bases de fundamentação das memórias e das histórias. O que é preciso para potencializar esses recursos são instrumentos de aferição capazes de medir as possibilidades e resultados do investimento na cultura para além das intuições e opiniões. Avaliar o impacto na formação de capital social, saúde, educação, inserir a cultura como produto da História, no passado e no presente.

Mas enquanto o país surfar na onda negacionista que vemos crescente na sociedade brasileira estaremos muito próximos do tombo e afundando cada vez mais, pois a negação dos direitos envolve o presente e o futuro. Sim, a cultura não é nenhuma caridade, ela é um direito constitucional que nos tem sido negado nas suas mais variadas formas de expressão.

Na sua dimensão material ou imaterial, a cultura faz parte de um conjunto de experiências históricas vividas de forma mais ou menos integrada, portanto, dinâmica. Mola propulsora de geração e distribuição de riqueza, a cultura não merece ser clientelista, nem assistencialista, muito menos instrumento de neutralização das mazelas sociais. Seu potencial é exatamente o de superação das desigualdades, de reforço da dignidade e resgate da cidadania.

Nossas histórias resultam de uma construção seletiva das culturas e das memórias que possuímos sobre o passado, orientadas por demandas coletivas do presente. E é no presente que podemos definir a função da cultura em circuitos econômicos e projetos políticos para pavimentar os caminhos em direção ao futuro de uma sociedade com igualdade social e respeito às diferenças.

"Finalizo, então, lembrando que a cultura sempre resistirá, de modo conveniente ou inconveniente, jamais conivente."

Parafraseando uma atriz de longa carreira que há pouco fez o papel de dublê de secretária especial da cultura: “eu tinha tanta coisa bacana para falar”, mas os limites de palavras desta coluna não permitem seguir adiante. Finalizo, então, lembrando que a cultura sempre resistirá, de modo conveniente ou inconveniente, jamais conivente.

Não será simplesmente tocando o berrante, seu moço, que sua boiada vai passar.

Foto do Ítalo Bezerra

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