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A simbologia por trás do voto de Cármen Lúcia
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É doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Pesquisa agendas internacionais voltadas para as mulheres de países periféricos, representatividade feminina na política e história das mulheres. É autora do livro de contos

Kalina Gondim comportamento

A simbologia por trás do voto de Cármen Lúcia

A ministra ontem deu o recado: com a democracia e com as mulheres não se brinca.
Cármen Lúcia, ministra do STF (Foto: Rosinei Coutinho/STF)
Foto: Rosinei Coutinho/STF Cármen Lúcia, ministra do STF

No ano de 2022 fui presenteada com a obra “A Independência do Brasil — As mulheres que estavam lá”, organizada pelas autoras Heloísa Starling e Antônia Pellegrino. O fio condutor do livro é a apresentação e o reconhecimento público de mulheres que participaram ativamente de lutas em prol da libertação brasileira do jugo da coroa portuguesa.

O posfácio da obra foi escrito por Cármen Lúcia Antunes Rocha (ministra Cármen Lúcia) em uma narrativa impecável e profundamente peremptória, a ministra lança a seguinte provocação: “Em que canto guardado ou escondido ficaram as mulheres silentes e desistoriadas?”.

A partir da leitura do livro, comecei a acompanhar mais de perto os passos de Cármen Lúcia, suas colocações sempre contundentes e amparadas em fatos históricos, em obras literárias, reflexões filosóficas, e, em vários julgamentos, a ministra sempre trazia à baila questões acerca da opressão, do silenciamento e da invisibilidade feminina.

A ministra entendeu, desde sempre, e queria que todos entendessem, que as questões de gênero estão impregnadas em todos os âmbitos sociais, pois ela mesma sofreu com as discriminações com base no sexismo.

Em maio de 2023, escrevi um artigo para minha coluna no Jornal O POVO com o título: “Não somos coitadas!”. Nesse texto, abordei a lamentável e criminosa fraude à cota de gênero na política e a tentativa de parlamentares em votar uma PEC que anistiava partidos que descumprissem a cota.

Nessa época, foi bastante divulgado parte de um debate entre o ministro Nunes Marques e Cármen Lúcia, aquele em um tom paternalista, clamava por empatia às mulheres candidatas que sofriam abandono em seus próprios partidos.

Em outra perspectiva, Cármen Lúcia buscou enfatizar a conquista da cidadania feminina e a igualdade entre homens e mulheres consagrada na Constituição de 1988. Em seu discurso, a ministra enfatizou ainda que “mulheres não são silenciosas e nem coitadas” (sic).

CÁRMEN Lúcia: um discurso consistente e histórico(Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF)
Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF CÁRMEN Lúcia: um discurso consistente e histórico

Ontem, um dia histórico para nossa jovem e incompleta democracia, a atenção do público estava voltada para Cármen Lúcia, pois o destino do ex-presidente Bolsonaro seria determinado, em grande medida por ela.

A ministra destacou a importância da ação penal em questão, dado que, naquela ocasião, se julgavam crimes contra o Estado Democrático de Direito. Esse fato adquire maior gravidade quando recordamos que, em nosso país, a ditadura militar atravessou longos 21 anos.

O presente julgamento é histórico, pois, pela primeira vez na história do Brasil, militares de alta patente foram condenados. Devemos destacar também seu teor pedagógico, que deixa a lição de que não serão toleradas ações que atentem contra a democracia.

Durante sua fala, Cármen Lúcia destacou o quanto o acontecimento do 8 de janeiro foi nocivo para o regime democrático, refutou toda a linha de defesa arquitetada pelos advogados dos réus, destacou, sem titubear, a liderança do ex-presidente Jair Bolsonaro nas ações golpistas e, por fim, relembrou os ataques de milícias digitais contra o sistema eleitoral e as urnas eletrônicas, com o objetivo de descredibilizar a Justiça Eleitoral.

Olhando por um retrovisor histórico e político, não podemos deixar de enaltecer a ironia por trás desse julgamento: isso porque o ex-presidente Bolsonaro tem em sua biografia uma lista interminável de ataques misóginos que tinham como alvo principalmente jornalistas e suas colegas parlamentares. Ainda em 2018, quando Bolsonaro foi candidato à presidência, mulheres se uniram em torno da hashtag “Ele não!”, do movimento Mulheres Contra Bolsonaro.

Já como mandatário, Bolsonaro desarticulou muitas das políticas voltadas às mulheres, continuou perseguindo mulheres jornalistas, com o duplo intuito de calar a voz feminina e ameaçar a liberdade de expressão. Entretanto, quis o destino que Bolsonaro fosse parado por uma mulher e esse fato carrega muita simbologia.

Diante desse cenário, não posso deixar de transcrever parte do posfácio escrito por Cármen Lúcia e incluso no livro falado no começo do artigo, no texto ela afirma que: “A mulher persiste em sua caminhada em busca da independência, a sua e a do outro, tudo para se fazer uma república de gentes livres.”

A ministra ontem deu o recado: com a democracia e com as mulheres não se brinca.

 

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