Cármen Lúcia foi interrompida quatro vezes, naquela quinta-feira, 11 de setembro, durante o voto no julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e sete aliados por tentativa de golpe e outros quatro crimes.
Companheiros de Primeira Turma, do Supremo Tribunal Federal (STF), solicitaram tempo de fala para tecer comentários sobre elementos do processo. Um dos pedidos partiu do ministro Flávio Dino que perguntou: “Ministra Cármen, vossa excelência concede um aparte?” A magistrada respondeu de pronto:
Todos, Ministro. Todos desde que rápido porque também nós mulheres ficamos dois mil anos caladas e nós queremos ter o direito de falar.
A fala de Cármen se destacou dos demais em todas as sessões do julgamento. A única voz feminina, entre ministros, advogados e réus masculinos. Para além da Primeira Turma, a ministra é a única mulher da maior Corte brasileira e a segunda da história a assumir o cargo.
Elegante s sóbria em um tailleur branco com detalhes preto e botões dourados por baixo da toga, voz firme e os tradicionais cabelos grisalhos, a mulher foi a responsável por emitir o voto que formou maioria para condenar um ex-presidente e demais integrantes (inclusive oficiais do Exército) de uma organização criminosa por tentativa de ataque à democracia do Brasil.
O mesmo ex-presidente que, em 2021, foi condenado pela Justiça Federal em São Paulo por declarações que discriminam e reforçam o preconceito contra mulheres. O mesmo Brasil, que durante toda sua história, afastou, marginalizou e diminuiu figuras femininas de espaços de poder. O voto de Cármen Lúcia, naquela tarde, foi um momento de quebra.
No início de sua manifestação, Cármen Lúcia expressou a gravidade do momento, afirmando que no julgamento "pulsa o Brasil que me dói" e que a ação penal era "quase um encontro do Brasil com seu passado, presente e futuro".
A ministra fez questão de sublinhar que "a lei é para ser aplicada igualmente para todos" e que o juiz tem o dever de julgar, ressaltando que "os fatos que são descritos desde a denúncia, não foram negados em sua essência".
Fez, ainda, um retrospecto das quase quatro décadas da Constituição Federal de 1988, que trouxeram estabilidade democrática e liberdades individuais através de dez eleições locais e nove gerais.
A trajetória, no entanto, não teria sido "só rosas", segundo a ministra, que mencionou os impeachments de Fernando Collor (1992) e Dilma Rouseff (2016), além das manifestações de jovens e caminhoneiros.
Cármen Lúcia pontuou que, desde 2021, além dos desafios impostos pela pandemia, "novos focos de pesares sociopolíticos brotaram nessas terras a partir de estratégias e práticas voltados a objetivos espúrios", exatamente o que foi denunciado pela Procuradoria Geral da República.
Ela lamentou que "arou-se um terreno social e político para semear o grão maligno da anti-democracia", e alertou que, "por mais que se cuide da saúde pública e política, das estruturas institucionais", "não se tem imunidade absoluta contra o vírus do autoritarismo", fazendo também referência às ações do governo Bolsonaro durante os anos de pandemia.
Seguindo seu voto, Cármen Lúcia rejeitou todas as questões preliminares levantadas pelas defesas dos réus. Se opôs aos argumentos de nulidade da delação premiada do ex-ajudante de ordens Mauro Cid e de cerceamento de defesa. A ministra ainda descartou a ideia de que os atos de 8 de janeiro de 2023 foram um evento de menor gravidade.
Essa posição a colocou em divergência com o ministro Luiz Fux, que na sessão anterior havia acatado as questões preliminares e defendido a anulação do processo por incompetência do Supremo.
Houve três apartes durante o voto. O ministro Flávio Dino aproveitou para criticar as movimentações por anistia que correm no Congresso. Mencionou o homicídio de Charlie Kirk, nos Estados Unidos, um país que nas palavras dele, "onde houve anistia, mas a paz não foi alcançada".
Alexandre de Moraes, por outro lado, explicitou a questão da organização criminosa, afirmando: "É muito importante nós deixarmos muito claro para a sociedade (...) que não foi um domingo no parque, não foi um passeio na Disney, foi uma tentativa de golpe de estado".
Ele exibiu um vídeo com um discurso de Bolsonaro em 7 de setembro de 2022, onde o ex-presidente disse: "Temos um ministro desse Supremo que ousa continuar fazendo aquilo que nós não admitimos. [...] Ou esse ministro se enquadra ou pede para sair".
E continuou: "Dizer a esse ministro que ele tem tempo ainda para redimir, de arquivar seus inquéritos. Ou melhor, acabou o tempo dele. Sai Alexandre de Moraes, deixa de ser canalha, deixe de oprimir o povo brasileiro".
Após a exibição, Moraes questionou retoricamente: "Algum de nós aqui afirmaria que isso é liberdade de expressão e não crime?".
Cármen Lúcia, ao retomar a palavra, endossou a visão da organização criminosa e questionou se manifestações e discursos, citando Bolsonaro como líder e exemplos como as faixas e a camisa do homem que quebrou o relógio de D. João VI, seriam "crime ou liberdade de expressão?".
Ela concluiu que os envolvidos nos atos golpistas deixaram "rastros" de suas ações, pois, ao tentar "se mostrar mais do que ser", acabaram por documentar suas próprias participações: "Elas fotografam, como se fotografa a comida do dia a dia", disse.
Com voz firme, a ministra condenou os oito réus por todos os crimes os quais estavam acusados. A PGR, segundo ela, "fez prova cabal, de que um grupo liderado por Jair Messias Bolsonaro, composto por figuras-chave do governo, das Forças Armadas e de órgãos de inteligência desenvolveu e implementou plano progressivo e sistemático de ataque às instituições democráticas com a finalidade de prejudicar a alternância legítima de poder nas eleições de 2022 e minar o livre exercício dos demais poderes constitucionais”.
O voto foi direto e rápido, defendido um dia após quase 13 horas de fala do ministro Luiz Fux, que absolveu seis réus por trama golpista e outros crimes. Cármen citou democracia e relembrou momentos históricos. Em diversos momentos, defendeu a condenação quase que como algo “óbvio”.
No geral, não houve pessimismo. Mesmo os momentos de lembrança aos ataques à democracia eram seguidos por um reforço às instituições brasileiras. Para Cármen, no passado, "se houve dor, também houve muita esperança".
“Uma vez uma autoridade me disse: ‘vocês (mulheres) foram silenciosas na história. Eu respondi: ‘não, nós fomos silenciadas porque as que falaram foram tornadas invisíveis’”, comentou Cármen Lúcia, em 17 de janeiro de 2025, ao PodEcast, programa da Escola Nacional de Administração Pública (Enap).
No bate-papo, ela citou mulheres “invisibilizadas" na história. Dona Leopoldina, alicerce para a Independência brasileira; Hipólita Jacinta, uma das conjuradas mineiras que recebia rebeldes na fazenda que possuía, escondeu o revolucionário Tiradentes e traduziu a Constituição francesa para ele; e a cearense Bárbara de Alencar, a primeira presa política do Brasil.
Há menos de 100 anos as mulheres não podiam votar ou ser votadas. Após quase 150 anos de Independência, somente a Constituição de 1988 reconheceu mulheres e homens como iguais perante a lei e apenas em 2006, a violência doméstica e familiar contra a mulher ganhou proteção legal.
O voto de Cármen Lúcia indica uma visão aparentemente simples: uma mulher tomando uma decisão poderosa. Quando se considera a visão total, no entanto, ele “vem coroar bastante toda uma luta política de muitos anos, que vem de muitos séculos, muito tempo antes desse momento”, conforme a historiadora Eilane Lourenço, técnica do Arquivo Público do Ceará.
Para a professora, a ministra “votou em nome de tantas outras mulheres que são protagonistas de lutas políticas, de ideias, de posicionamentos, que muitas vezes em seus tempos não era bem visto ou bem aceito”.
Para além do valor simbólico, a historiadora Eilane considera que a ministra Cármen demonstrou “não só toda a sua capacidade técnica, mas de estar plenamente integrada com aquilo que ela está dizendo”. “De fato, ela assume posições não partidárias, mas um papel, uma fala, um voto que preza pela manutenção do Estado Democrático de Direito”, diz.
O mesmo é defendido pela cientista social Monalisa Torres, do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem-UFC). A defesa do espaço feminino percorre vários setores da vida de Cármen, não apenas no plenário, mas em palestras ou entrevistas como a citada mais acima.
Essa característica, para Monalisa, seria “sintomática”, não apenas em um caso de ataques à democracia, mas para além do próprio lugar da mulher sobre o julgamento.
“Esse julgamento é histórico também no ponto de vista da resiliência das instituições democráticas que atendem contra eventos ações agentes que atentam contra ela. Então é uma lição para o Brasil inteiro ou para o mundo inteiro para todos os estados democráticos que enfrentam seus próprios movimentos de extrema direita autoritários reacionários contra minorias”, considerou.
Segundo Eilane Lourenço, a participação indica “uma grande conquista feminina dentro do Brasil” que, no entanto, ainda precisa evoluir em questões de violência, participação nas câmaras legislativas e em outros espaços que ainda são predominantemente masculinos”.
Um exemplo desta violência estaria no próprio condenado, Jair Bolsonaro (PL), político com histórico de ataques a colegas de profissão e demais figuras femininas que o circulam. O ex-presidente chegou a virar réu por injúrias contra a deputada Maria do Rozário e já afirmou que “fraquejou” quando teve uma filha.
“Bolsonaro foi um político que diversas vezes expressou o seu desprezo pela equidade de gênero”, afirmou Eilane Lourenço. “O fato de uma mulher ser esse voto de Minerva, que vai decidir esse destino político, isso tem um impacto muito grande na história do Brasil, da história do tempo presente”.
O mesmo foi considerado por Monalisa Torres. “O voto reflete a resiliência contra um agente político, no caso do Bolsonaro, que tantas vezes reiteradamente insinuou, tencionou, ou expôs um posicionamento extremamente misógino, em tantas ocasiões diferentes. Bolsonaro como parlamentar, ou mesmo como presidente, enfim, como figura pública, como figura política, ele demonstrou o seu desrespeito ao lugar da mulher”, considerou Monalisa.
Prever o futuro é um dos maiores "perigos" na percepção de um historiador. Mesmo assim, o presente indica que o voto de Cármen ainda não acabou. As falas, os reforços à democracia e a própria presença da ministra tendem a permanecer no imaginário popular e político brasileiro. A mulher que julgou, condenou e falou em nome da democracia brasilera.
“Nós ainda não podemos medir, mas com certeza no futuro nós poderemos ver o peso que a representatividade da Carmen Lúcia nesse dia de hoje com esse voto vai ter em relação a várias situações que nós ainda vivenciamos, de violência, de machismo, de racismo, de preconceito, de desigualdade”, considerou a professora Eilane.
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