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A minha mala e a do Araújo
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Marília Lovatel cursou Letras na Universidade Estadual do Ceará e é mestre em Literatura pela Universidade Federal do Ceará. É escritora, redatora publicitária e professora. É cronista em O Povo Mais (OP+), mantendo uma coluna publicada aos domingos. Membro da Academia Fortalezense de Letras, integrou duas vezes o Catálogo de Bolonha e o PNLD Literário. Foi finalista do Prêmio Jabuti 2017 e do Prêmio da Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil – AEILIJ 2024. Venceu a 20ª Edição do Prêmio Nacional Barco a Vapor de Literatura Infantil e Juvenil - 2024.

A minha mala e a do Araújo

A combinação que eu jurava ser a correta não liberou a trava. Todas as possibilidades prováveis e também as improváveis foram nulas
Tipo Crônica
Foto de apoio ilustrativo. Uma crônica sobre troca de malas (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Foto de apoio ilustrativo. Uma crônica sobre troca de malas

Desde as caravelas, as viagens rendem crônicas. Provam isso A carta de Pero Vaz de Caminha e As aventuras de Hans Staden, sem esquecer os relatos preciosos dos jesuítas sobre a terra que os portugueses julgaram descobrir além-mar. Assim e justamente, uma mala de viagem é o tema desta crônica. A minha. A que o Araújo achou que era dele.

O destino era a Alemanha, com uma parada em Lisboa. Conexão rápida, caso a pane no avião — em solo, graças a Deus — não tivesse provocado o cancelamento do voo e um atraso de cinco horas. Deveríamos pegar os nossos pertences, usufruir do pernoite na capital lusa e embarcar no portão remarcado para a tarde seguinte em nossa passagem. Os turnos extras para passear poderiam ter compensado o transtorno. Poderiam, se não fosse o Araújo.

Quem é o Araújo — o leitor deve estar se perguntando. Respondo: não faço a menor ideia. O que sei dele é o seu nome escrito na etiqueta da mala largada na esteira de onde ele tirou a minha. Mesma cor, mesma marca, mesmo modelo, porém a dele menor e muito mais usada.

O Araújo levou embora a que eu comprei para inaugurar nesta viagem. Novinha. Com todas as minhas coisas dentro, às quais ele não teve acesso por causa da senha do cadeado de três números rotativos. “Bendita senha”, pensei. Pelo menos até saber que o senhor Araújo desfizera o engano e que a companhia aérea enviaria a bagagem certa até o meu endereço alemão. E chegou direitinho.

Finalmente recebi aquilo por que esperara vários dias, nos quais usei as peças guardadas na mochila — em caso de emergência — e outras emprestadas por Marcelinha. Agora bastava abrir para usar as roupas, os calçados e agasalhos. Tudo que me demandou tempo para escolher e organizar durante os preparativos. Então experimentei a frustração do Araújo.

A combinação que eu jurava ser a correta não liberou a trava. Todas as possibilidades prováveis e também as improváveis foram nulas.

Estou a ponto de arrebentar a fechadura da mala, intacta no canto do quarto do hotel enquanto escrevo este texto. Acabo, porém, de realizar a minha própria descoberta ultramarina. Não necessito do que está lá dentro. Até hoje nada usei do que considerava imprescindível, pois, quando se viaja, o que interessa está fora da mala: a vida. Ainda que navegar seja preciso e viver não seja.

Foto do Marília Lovatel

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