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Quando o Tylenol e as mudanças climáticas se encontram
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Marina Mendonça é bacharela e mestre em física, atua como comunicadora de ciência desde 2019 e está nos podcasts Dragões de Garagem e Tortinha de Climão

Marina Mendonça meio ambiente

Quando o Tylenol e as mudanças climáticas se encontram

A ciência não é um buffet de respostas prontas, no qual pegamos aquelas que nos interessam como em um almoço no self-service. É uma conversa longa, cheia de revisões e contradições
É falso que tylenol cause autismo, apesar de fala do presidente Donald Trump (Foto: TIMOTHY A. CLARY / AFP)
Foto: TIMOTHY A. CLARY / AFP É falso que tylenol cause autismo, apesar de fala do presidente Donald Trump

“Tomar Tylenol não é bom -- Eu vou dizer: não é bom” disse o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, enquanto associava o consumo de paracetamol por gestantes ao número crescente de pessoas diagnosticadas com autismo. Esse aumento é real e pode ser facilmente verificado. Nos anos 2000, nos EUA, 1 em cada 100 crianças de 8 anos eram diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), enquanto em 2022 o número de diagnóstico passa para 1 em 31 crianças.

Agora, apesar do aumento nos diagnósticos ser facilmente verificável, não podemos dizer o mesmo sobre essa relação com o medicamento. Essa suspeita não é novidade, datando dos anos 2000, com a observação da relação de maior número de diagnósticos de autismo entre crianças expostas ao paracetamol, em comparação às crianças que não foram.

Em 2021, viriam a reforçar essa correlação em uma meta-análise (que seria uma espécie de pesquisa sobre os resultados de outras pesquisas). Mas isso não significa que, de fato, há uma relação de causa e consequência, apenas porque há correlação.

É como se, ao falar dos aumentos de temperaturas médias causados pelo aquecimento global, não citassem os gases de efeito estufa, mas sim o número de manchas solares. Você vai encontrar diversos trabalhos por aí fazendo essa associação.

No entanto, ainda que esta correlação exista e quanto maior o número de manchas solares maior a temperatura média global, não há uma relação de causalidade, nem há uma evidência robusta que esse seja o ponto central. Na verdade, há evidências suficientes de que não é essa correlação que explica a Terra ficando mais e mais quente do jeito que tem ficado.

No caso do autismo e do Tylenol, também temos uma situação similar. Há evidência contrária e, portanto, essa correlação não guarda uma relação causal, o que chamamos de correlação espúria. Não sabemos qual é “a causa” do autismo. Sabemos, sim, que o TEA se dá por questões multifatoriais, uma combinação de fatores genéticos e fatores ambientais que não temos ainda totalmente mapeados.

E então, na tentativa de conhecer melhor esta neurodivergência, podemos lançar mão do reconhecimento de correlações, do estudo das relações entre eventos. No entanto, isto é somente uma etapa dentre tantas até encontrarmos explicações para os fenômenos que nos interessam.

Mas não vim aqui para falar apenas o óbvio e já desmentido: a fala do presidente Donald Trump é, na melhor das hipóteses, muito profundamente equivocada. Vim aqui para falar de negacionismo.

No dia 1º de julho de 2025, Paris entrou em alerta vermelho para altas temperaturas, com o topo da Torre Eiffel fechado, o trânsito poluente proibido e restrições de velocidade em vigor, enquanto uma onda de calor escaldante atingiu a Europa. Cientistas afirmam que as mudanças climáticas induzidas pelo homem estão tornando essas ondas de calor mais intensas, frequentes e generalizadas(Foto: Thibaud MORITZ / AFP)
Foto: Thibaud MORITZ / AFP No dia 1º de julho de 2025, Paris entrou em alerta vermelho para altas temperaturas, com o topo da Torre Eiffel fechado, o trânsito poluente proibido e restrições de velocidade em vigor, enquanto uma onda de calor escaldante atingiu a Europa. Cientistas afirmam que as mudanças climáticas induzidas pelo homem estão tornando essas ondas de calor mais intensas, frequentes e generalizadas

Negacionismo é um termo bastante conhecido. É utilizado para falar de uma tendência perigosa de negar fatos históricos e consensos científicos. Geralmente, quando falamos de negacionismo, pensamos em uma contrariedade dura, “não acredito”, “isso não é verdade”, “não foi assim”. Mas é preciso lembrar que ele existe em um espectro.

Às vezes mais direto, rejeitando completamente o fenômeno, às vezes mais indireto e sofisticado, aceitando o fenômeno e moldando seus efeitos a uma realidade que não existe.

Frequentemente essa última forma, o negacionismo soft, é associada à pseudociência (afirmações com verniz científico, mas que não passaram de verdade pelo método da ciência), ou mesmo ao cherry-picking (falácia que indica a seleção de resultados específicos, ignorando o contexto, o consenso ou outros resultados).

O caso do Tylenol está mais próximo desta segunda ponta do espectro. Assim como a nova onda do negacionismo do aquecimento global, ela não nega o problema, mas diminui as suas consequências ou o usa de maneira a manter as coisas como estão. Um ótimo exemplo é quando incentivam o consumo de mais e mais petróleo como única saída para financiar a (indubitavelmente necessária) transição energética.

Independente do ponto onde se encontra dentro deste espectro, o negacionismo tem uma característica bastante marcante: usar explicações e justificativas simples para fenômenos muito complexos. Como o TEA ou as mudanças climáticas.

Gostamos de explicações, justificativas, e soluções simples para questões complexas por diversos motivos: heurísticas mentais, vieses cognitivos, até cuidado. No caso do TEA, é fácil imaginar pais, familiares e tutores querendo evitar ter um bebê autista — seja por ver sofrimento causado por um mundo que não é devidamente acessível, seja por alguma outra convicção que não me cabe. Pensar que podem apenas manter-se longe do Tylenol durante a gravidez é uma “solução” simples.

Vale sempre a pena ter um pé atrás com explicações que parecem fáceis demais. Se o problema é muito complexo, a chance da resposta ser simples é pequena(Foto: Es sarawuth via Adobe Stock)
Foto: Es sarawuth via Adobe Stock Vale sempre a pena ter um pé atrás com explicações que parecem fáceis demais. Se o problema é muito complexo, a chance da resposta ser simples é pequena

Outra motivação para gostarmos do simples respondendo o complexo é a relação com o controle do fenômeno. Em alguns casos, a ideia de que temos o controle pode ser empoderadora (basta não tomar Tylenol). Em outros, a ideia de não o termos pode ser um grande alívio (não adianta lutar contra as mudanças climáticas, é natural).

É por isso que vale sempre a pena ter um pé atrás com explicações que parecem fáceis demais, simples demais. Não porque elas não existam, mas se o problema é muito complexo, a chance da resposta ser simples é pequena. E aí, pra ajudar, utilizam uma codificação com ares científicos para dar credibilidade e pronto. É fácil de confiar. Links para artigos científicos, livros, gráficos e estatísticas bonitas nem sempre vão estar carregando consigo um consenso científico.

E eu imagino que já estejam cansados de ouvir isso, mas precisamos nos manter atentos. Estarmos sempre disponíveis para aprender coisas novas, termos boas referências de especialistas, desconfiarmos do excesso de certeza; mas, também, desconfiarmos de quem apela para sua necessidade de estar sempre duvidando de tudo.

A ciência não é um buffet de respostas prontas, no qual pegamos aquelas que nos interessam como em um almoço no self-service. É uma conversa longa, cheia de revisões e contradições. E agora eu tô por aqui também; tentando entender as coisas com calma, dividindo o que encontro e sempre aberta a trocar com vocês.

Foto do Marina Mendonça

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