
Marina Mendonça é bacharela e mestre em física, atua como comunicadora de ciência desde 2019 e está nos podcasts Dragões de Garagem e Tortinha de Climão
Marina Mendonça é bacharela e mestre em física, atua como comunicadora de ciência desde 2019 e está nos podcasts Dragões de Garagem e Tortinha de Climão
“Tomar Tylenol não é bom -- Eu vou dizer: não é bom” disse o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, enquanto associava o consumo de paracetamol por gestantes ao número crescente de pessoas diagnosticadas com autismo. Esse aumento é real e pode ser facilmente verificado. Nos anos 2000, nos EUA, 1 em cada 100 crianças de 8 anos eram diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), enquanto em 2022 o número de diagnóstico passa para 1 em 31 crianças.
Agora, apesar do aumento nos diagnósticos ser facilmente verificável, não podemos dizer o mesmo sobre essa relação com o medicamento. Essa suspeita não é novidade, datando dos anos 2000, com a observação da relação de maior número de diagnósticos de autismo entre crianças expostas ao paracetamol, em comparação às crianças que não foram.
Em 2021, viriam a reforçar essa correlação em uma meta-análise (que seria uma espécie de pesquisa sobre os resultados de outras pesquisas). Mas isso não significa que, de fato, há uma relação de causa e consequência, apenas porque há correlação.
É como se, ao falar dos aumentos de temperaturas médias causados pelo aquecimento global, não citassem os gases de efeito estufa, mas sim o número de manchas solares. Você vai encontrar diversos trabalhos por aí fazendo essa associação.
No entanto, ainda que esta correlação exista e quanto maior o número de manchas solares maior a temperatura média global, não há uma relação de causalidade, nem há uma evidência robusta que esse seja o ponto central. Na verdade, há evidências suficientes de que não é essa correlação que explica a Terra ficando mais e mais quente do jeito que tem ficado.
No caso do autismo e do Tylenol, também temos uma situação similar. Há evidência contrária e, portanto, essa correlação não guarda uma relação causal, o que chamamos de correlação espúria. Não sabemos qual é “a causa” do autismo. Sabemos, sim, que o TEA se dá por questões multifatoriais, uma combinação de fatores genéticos e fatores ambientais que não temos ainda totalmente mapeados.
E então, na tentativa de conhecer melhor esta neurodivergência, podemos lançar mão do reconhecimento de correlações, do estudo das relações entre eventos. No entanto, isto é somente uma etapa dentre tantas até encontrarmos explicações para os fenômenos que nos interessam.
Mas não vim aqui para falar apenas o óbvio e já desmentido: a fala do presidente Donald Trump é, na melhor das hipóteses, muito profundamente equivocada. Vim aqui para falar de negacionismo.
Negacionismo é um termo bastante conhecido. É utilizado para falar de uma tendência perigosa de negar fatos históricos e consensos científicos. Geralmente, quando falamos de negacionismo, pensamos em uma contrariedade dura, “não acredito”, “isso não é verdade”, “não foi assim”. Mas é preciso lembrar que ele existe em um espectro.
Às vezes mais direto, rejeitando completamente o fenômeno, às vezes mais indireto e sofisticado, aceitando o fenômeno e moldando seus efeitos a uma realidade que não existe.
Frequentemente essa última forma, o negacionismo soft, é associada à pseudociência (afirmações com verniz científico, mas que não passaram de verdade pelo método da ciência), ou mesmo ao cherry-picking (falácia que indica a seleção de resultados específicos, ignorando o contexto, o consenso ou outros resultados).
O caso do Tylenol está mais próximo desta segunda ponta do espectro. Assim como a nova onda do negacionismo do aquecimento global, ela não nega o problema, mas diminui as suas consequências ou o usa de maneira a manter as coisas como estão. Um ótimo exemplo é quando incentivam o consumo de mais e mais petróleo como única saída para financiar a (indubitavelmente necessária) transição energética.
Independente do ponto onde se encontra dentro deste espectro, o negacionismo tem uma característica bastante marcante: usar explicações e justificativas simples para fenômenos muito complexos. Como o TEA ou as mudanças climáticas.
Gostamos de explicações, justificativas, e soluções simples para questões complexas por diversos motivos: heurísticas mentais, vieses cognitivos, até cuidado. No caso do TEA, é fácil imaginar pais, familiares e tutores querendo evitar ter um bebê autista — seja por ver sofrimento causado por um mundo que não é devidamente acessível, seja por alguma outra convicção que não me cabe. Pensar que podem apenas manter-se longe do Tylenol durante a gravidez é uma “solução” simples.
Outra motivação para gostarmos do simples respondendo o complexo é a relação com o controle do fenômeno. Em alguns casos, a ideia de que temos o controle pode ser empoderadora (basta não tomar Tylenol). Em outros, a ideia de não o termos pode ser um grande alívio (não adianta lutar contra as mudanças climáticas, é natural).
É por isso que vale sempre a pena ter um pé atrás com explicações que parecem fáceis demais, simples demais. Não porque elas não existam, mas se o problema é muito complexo, a chance da resposta ser simples é pequena. E aí, pra ajudar, utilizam uma codificação com ares científicos para dar credibilidade e pronto. É fácil de confiar. Links para artigos científicos, livros, gráficos e estatísticas bonitas nem sempre vão estar carregando consigo um consenso científico.
E eu imagino que já estejam cansados de ouvir isso, mas precisamos nos manter atentos. Estarmos sempre disponíveis para aprender coisas novas, termos boas referências de especialistas, desconfiarmos do excesso de certeza; mas, também, desconfiarmos de quem apela para sua necessidade de estar sempre duvidando de tudo.
A ciência não é um buffet de respostas prontas, no qual pegamos aquelas que nos interessam como em um almoço no self-service. É uma conversa longa, cheia de revisões e contradições. E agora eu tô por aqui também; tentando entender as coisas com calma, dividindo o que encontro e sempre aberta a trocar com vocês.
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