
Neila Fontenele é editora-chefe e colunista do caderno Ciência & Saúde do O POVO. A jornalista também comanda um programa na rádio O POVO CBN, que vai ao ar durante os sábados e também leva o nome do caderno
Neila Fontenele é editora-chefe e colunista do caderno Ciência & Saúde do O POVO. A jornalista também comanda um programa na rádio O POVO CBN, que vai ao ar durante os sábados e também leva o nome do caderno
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Eu entrei no jornalismo aos 17 anos, em 1986, e lembro de ter me assustado com as estatísticas sobre a violência contra a mulher; na mesma época, comecei a ler os textos de Simone de Beauvoir, iniciando com a belíssima narrativa de “O Segundo Sexo”, sobre as fêmeas de várias espécies.
Isso me fez questionar a razão pela qual, na espécie humana, existem homens com tamanha agressividade contra tudo o que envolve o feminino e, também, como muitas mulheres se submetem a vários tipos de agressividade.
Mesmo com todas as mudanças da sociedade e com a criação de leis contra o feminicídio, ainda assistimos a absurdos. Nesta semana, por exemplo, a operação “Shamar”, coordenada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública e executada pela Coordenadoria de Planejamento Operacional (Copol) e pelas Polícias Civil e Militar do Ceará, prendeu 501 pessoas suspeitas de violência contra a mulher, das quais 402 em flagrante.
O número foi 52% maior do que no mesmo período de 2024, envolvendo casos de feminicídio, violência doméstica, estupro e descumprimento de medidas protetivas.
Mesmo sendo mulher e entendendo questões de dependência emocional, social e econômica, acredito que a elevação desses números merece um estudo mais aprofundado. Sabemos dos problemas ligados ao machismo estrutural e das contradições das relações de afeto, mas o que justifica a elevação desses casos? Seria efeito direto do aumento de denúncias formais feitas para os devidos canais? Haveria mais denúncias ou mais casos de violência? E por que tantas mulheres ainda se submetem a tais atos?
Do ponto de vista emocional, vale lembrar Sigmund Freud. O pai da Psicanálise chegou a falar da sua dificuldade de decifrar a sexualidade feminina. Sua grande pergunta era “o que quer uma mulher?”, na tentativa de desvendar os desejos femininos.
Na época, havia uma questão quase mitológica, através da qual o grande desejo das mulheres era resumido à maternidade, um fato ainda reforçado em vários momentos, principalmente quando se fala em “relógio biológico”.
A pergunta de Freud foi reformulada pelo francês Jacques Lacan, que criou o aforismo: “A mulher não existe”, ressaltando a inexistência de um significante universal capaz de representar todas as mulheres e reforçando a singularidade de cada uma. Nos relatos clínicos, as características individuais são reforçadas, assim como a dependência econômica e emocional.
Algumas mulheres, entretanto, apresentam seu autodiagnóstico: “só gosto de traste” ou “tenho o dedo podre”. Há casos de pessoas que chegam a dizer que sofrem de “trastite”, reforçando características comportamentais das quais não conseguem se libertar.
Embora as saídas para esse tipo de problema devam passar pela criação de estruturas de repressão à violência e pelo acolhimento às vítimas com redes de apoio, ainda vale avaliar o “dedo podre”. O que há de sedutor no “traste”?
O romancista Nelson Rodrigues fez várias elucubrações sobre o assunto; a escritora Carla Madeira também mostra bem a toxicidade de relações no seu livro “Tudo é Rio”. Ficção e realidade revelam as contradições e a complexidade das relações, com várias concepções sobre a configuração do “traste”, muitas vezes desenhado como o “incapaz” ou o “violento”; mas existem movimentos novos reforçando o mito e a crise da masculinidade.
O termo “red pill” é utilizado para defender a “masculinidade dominante”, com conceitos anacrônicos e dicas de sedução, segurança e estilo de vida, oferecendo uma dimensão dessa questão. Para os defensores de tal modelo, o homem se responsabiliza pelo dinheiro e a mulher retribui de forma afetiva e sexual, além dos serviços domésticos prestados.
Um posicionamento difícil de se sustentar, cuja prova pode ser vista do ponto de vista econômico, quando se pensa: quantos homens conseguiriam manter financeiramente a família sem ajuda das suas companheiras?
Esse movimento mostra bem as dificuldades masculinas do ponto de vista simbólico e a tentativa de encontrar um papel social dentro de um mundo em mudança, através do qual o homem se apresenta sempre como sujeito.
Os avanços e recuos nesse processo dão uma dimensão da crise; mas como disse Lacan, “a mulher não existe”. E eu complementaria, dizendo que “o homem também não existe” - mas a violência existe, e as estruturas de poder também.
Talvez por essa razão a “trastite” seja uma “doença” de difícil cura. Cada um tem de analisar a sua subjetividade e o nível de qualidade das relações que mantém no dia a dia.
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