Logo O POVO+
Seguindo o rastro das armas de fogo
Foto de Ricardo Moura
clique para exibir bio do colunista

Ricardo Moura é jornalista, doutor em Sociologia e pesquisador do Laboratório da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC)

Seguindo o rastro das armas de fogo

É por meio da gestão desse vasto arsenal que grupos armados impõem suas vontades em territórios inteiros e quadrilhas especializadas espalham o terror por todo o Brasil
ARMAS de fogo apreendidas pela Polícia do Ceará (Foto: Foto: SSPDS)
Foto: Foto: SSPDS ARMAS de fogo apreendidas pela Polícia do Ceará

Há uma expressão no jornalismo investigativo que diz ser preciso seguir o rastro do dinheiro (follow the money, no original) para que possamos chegar às figuras de alto escalão nos crimes de maior complexidade. Em se tratando de facções criminosas e quadrilhas interestaduais, poderíamos atualizar esse bordão: siga o rastro das armas de fogo. É por meio da gestão desse vasto arsenal que grupos armados impõem suas vontades em territórios inteiros e quadrilhas especializadas espalham o terror por todo o Brasil.

Já escrevi aqui certa vez que armamentos não crescem em árvores. Há muita gente graúda encarregada de fazer a distribuição desse arsenal capilarizando-o. Compreender essa dinâmica não é uma tarefa fácil. Há muitas informações sobre as rotas que as drogas percorrem para chegar dos locais de produção aos mercados consumidores, contudo, o financiamento e a cadeia de suprimento aos grupos armados ainda são temas opacos na área da segurança pública.

Identificar e prender os armeiros, pessoas que armazenam e fornecem armas de fogos às organizações criminosas seja vendendo ou alugando, é um passo importante para que essa rede possa ser desarticulada. A Polícia tem realizado avanços nesse sentido, indo além das apreensões cotidianas feitas pelo policiamento tático e ostensivo.

Os desdobramentos da investigação sobre a chacina da Sapiranga, ocorrida em 25 de dezembro de 2021 e motivada por uma disputa entre facções rivais, são bastante ilustrativos, por sua vez, para revelar a interface entre organizações criminosas e membros do grupo formado por caçadores, atiradores desportivos e colecionadores (CACs).

Em junho do ano passado, um homem foi alvo de um atentado em sua residência coordenado justamente por um dos mandantes da chacina conhecido como “Bombado”. Em depoimento à Polícia, um dos autores do crime informou que a vítima seria o armeiro de um grupo rival. O objetivo do ataque, portanto, seria obter armas e munição.

Embora os parlamentares da Bancada da Bala tentem diminuir a importância desse elo entre CACs e o crime organizado, há muitas evidências disso. O jornalista Rafael Soares, do jornal O Globo, acompanha essa movimentação de perto. Na semana passada, ele publicou uma reportagem em que mostra como clubes de tiro localizados no Sudeste do País abastecem o arsenal de grupos criminosos no Nordeste.

Documentos falsificados, compradores laranjas e roubos forjados são estratégias usadas para fazer com que o armamento chegue a estados como Maranhão, Paraíba e Pernambuco. Trocas de mensagens entre traficantes e donos dos estabelecimentos revelam a promiscuidade dessa relação.

A liberação indiscriminada da posse e do porte de armas de fogo promovida pelo governo anterior, por meio do afrouxamento do controle sobre a circulação dos armamentos e de decretos permissivos, trouxe novos desafios aos órgãos de segurança. A falta de um monitoramento mais preciso sobre o funcionamento de clubes de tiro e a gestão do arsenal de colecionadores abre brechas para que o crime organizado se beneficie de tais redes que contam ainda com a participação de agentes públicos.

Por óbvio que não é possível criminalizar toda pessoa que deseja manter uma arma de fogo em casa. O acúmulo de notícias sobre casos de desvios e conluio com organizações criminosas, no entanto, lança dúvidas sobre até mesmo quem possui uma conduta irrepreensível no manuseio de seus armamentos.

Com o intuito de aprimorar o controle sobre o fluxo de circulação do armamento no País, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) editou um novo decreto sobre posse e porte de armamentos além de promover um recadastramento das armas de fogo permitidas e restritas logo nos primeiros dias do novo governo. Foram contabilizadas 939.154 armas recadastradas, ou seja, 99% do total do que se tem registrado.

Embora o resultado seja expressivo, 6.168 armas de uso restrito ainda se encontram em situação ilegal, fazendo com que seus proprietários possam ser enquadrados no crime de posse e porte ilegal de armamento. Uma operação foi realizada pela Polícia Federal no dia seguinte ao anúncio do balanço para cumprir apreensões administrativas de armamentos, bem como mandados de prisão em aberto contra caçadores, atiradores e colecionadores. Nos primeiros dias, 47 pessoas foram presas.

Muito há o que ser feito sobre a regulação do arsenal em circulação em território nacional, mas os primeiros passos estão sendo dados. A atuação objetiva dos órgãos de segurança precisa vir acompanhada de uma contrapartida no campo das narrativas. A concepção errônea de que as armas de fogo serviriam como garantia da liberdade individual precisa ser combatida nos mais diversos espaços públicos e nas redes sociais. Há toda uma cadeia de gente interessada em comercializar armamentos independentemente dos efeitos perversos que essa atividade gera. Para sabermos quem realmente lucra com tanta violência, basta voltarmos ao início do texto: é só seguir o rastro do dinheiro.

Foto do Ricardo Moura

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?