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Casamento: entre o ideal do amor e a realidade da exaustão
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Sara Oliveira é repórter especial de Cidades do jornal O Povo há 10 anos, com mais de 15 anos de experiência na editoria de Cotidiano/Cidades nos cargos de repórter e editora. Pós-graduada em assessoria de comunicação, estudante de Pedagogia e interessadíssima em temas relacionados a políticas públicas. Uma mulher de 40 anos que teve a experiência de viver em Londres por dois anos, se tornou mãe do Léo (8) e do Cadu (5), e segue apaixonada por praia e pelas descobertas da vida materna e feminina em meio à tanta desigualdade.

Sara Oliveira cotidiano

Casamento: entre o ideal do amor e a realidade da exaustão

O que a sociedade promete, dificilmente se cumpre. Quando as mulheres descobrem que o amor romântico nada tem a ver com as questões sociais e o trabalho imputado à mulher
Casamento, romantismo, cansaço e separação (Foto: PixBay)
Foto: PixBay Casamento, romantismo, cansaço e separação

Sim, é tudo idealizado, projetado, programado, confirmado e, literalmente, sacramentado. Não conheci nenhuma mulher da minha idade que não tenha brincado de uma espécie de projeção do futuro, em que, aos 25 anos, você teria um emprego maravilhoso, um casamento perfeito e um filho mais perfeito ainda. A conta ainda não fecha, mas o fluxo está sendo seguido. Ali pelos 30, carreira ok, filhos demoram, marido também.

Porque o problema é esse e a gente descobre tarde demais: imaginar que a vida com outra pessoa será do jeito que a sociedade sonha é cruel. E a grande maioria das mulheres, pelo menos aquelas que hoje estão na casa dos 40 anos, pensava - e ainda pensa - desse jeito. Mas essa realidade tem mudado. O aumento no número de divórcios prova isso: 16% a mais em 2021, segundo o IBGE, em comparação com o ano anterior.

A média de idade em que as mulheres se separam? 40 anos. Com essa idade, muitas mulheres já cumpriram tudo que aprenderam a cumprir. “Fiz tudo bem direitinho, e agora?”. Depois de mil tentativas de agradar a Deus e o mundo - e de poucas vezes ser agradada -, depois de passar horas acordada durante madrugadas cuidando dos filhos, depois de estudar outras madrugadas para alcançar o mínimo, depois de dizer sim inúmeras vezes.

A bonança parece que não vai chegar nunca e, tal hora, a mulher acorda, olha pro lado e entende que se transformou. Duas coisas são fundamentais na chegada dessas novas fases: a pouca preocupação e atenção dada à opinião alheia e a segurança de que, depois de tudo que você viveu, cansou, decidiu, limpou, perdeu, ganhou, você é capaz de qualquer coisa mesmo. De fechar os olhos, perder os filtros, pagar pra ver e experimentar. E sim, tá tudo certo. É só a vida um tiquinho mais leve e menos desigual.

 

Casamento: "É um preço alto ficar e um preço alto sair" 

 

A psicóloga clínica Virgínia Damasceno respondeu algumas perguntas sobre como tem visto e entendido as mudanças pelas quais muitas mulheres passam. Ou ainda passarão. 

-As mulheres são “ensinadas” a seguir um fluxo de vida bem programado: estudar, emprego, casamento, filho… que sequência é essa e como ela está consolidada?

Então, essa história é bem complexa… esse “fluxo de vida” da mulher veio sendo construído ao longo de séculos pelos processos econômicos, políticos, sociais que determinam os comportamentos e impactam na nossa psicologia, no nosso desejo. O que conhecemos hoje em dia como “modelo natural de vida e família” ganhou esse contorno principalmente a partir da Revolução Industrial do séc. XVIII/XIX.

Fenômenos socioculturais como o ideal de amor romântico, o surgimento da família burguesa, as transformações das relações de trabalho, entre outros, foram modelando uma mentalidade acerca do lugar e da função da mulher na sociedade. Através de modos e costumes, das artes e do pensamento vigente, geração após geração, essa “programação” foi sendo configurada e passou a ser vista como algo “natural”, como o modelo a ser seguido. Houve um tempo em que estudar e trabalhar era proibido para a mulher. Seu ambiente “natural” era o doméstico (que é uma palavra bem cheia de significados simbólicos!).

Depois, passou a ser conveniente e necessário que a mulher ampliasse seu espaço de atuação e ganhasse o “direito” à escola e à fábrica, até que esse direito se transformou em necessidade e dever!
Quando observamos a história ocidental, podemos notar que esse programa, como você chama, veio se modificando e se ajustando de acordo, principalmente, com as necessidades e demandas do sistema capitalista. É ele quem determina o lugar cultural e ocupacional da mulher.


Então, estudar, trabalhar, casar e ter filhos foi se agregando às funções, desejos e deveres das mulheres e conferindo a elas um dado valor, um status de conquista, de competência, de sucesso, de “algo certo a se fazer” para pertencer a essa sociedade.

Queremos pertencer, precisamos pertencer, então, automaticamente, seguimos o fluxo, desempenhamos o nosso papel nesse roteiro.Mas esse processo é dinâmico, está sempre se redesenhando.

 

-Quando e como essas mulheres percebem que o fluxo está errado? 

 As mulheres nem sempre percebem que o fluxo está errado, porque ele é invisível, sutil, tem muitos ganhos, status, e afinal, todas o estão seguindo para pertencer… mas elas sentem algo estranho! Esse processo de dar-se conta não é geral: uma mulher ou grupo de mulheres pode estar muito bem adaptada ao fluxo enquanto outro grupo está à beira do colapso.

Então, quando elas percebem que algo não vai bem, isso se dá geralmente a partir dos sofrimentos e das violências que vão sendo identificadas no seu cotidiano: os impedimentos, as sobrecargas, as opressões, os silenciamentos, a solidão e angústia, tudo isso que torna a vida mais limitada e adoecida, principalmente porque impede uma escolha livre e baseada no desejo pessoal.

Sair desse fluxo é difícil, demanda muito esforço, rupturas, rebeldias e muita coragem. E é quase impossível fazê-lo individualmente. É um preço alto ficar e um preço alto sair. Nem sempre temos condição de bancar a mudança.


-Qual costuma ser a primeira atitude/mudança dessa mulher?

 Infelizmente a primeira atitude de uma mulher que percebe que algo vai mal é duvidar de si! Porque a dúvida é parte da programação mental da mulher. Logo depois ela quase sempre faz algo que garante sua sobrevivência e a possibilidade de sair ou mudar o fluxo: ela busca outras mulheres e pede ajuda. Questionar o status quo sozinha é pesado, adoecedor e pode ser fatal.

A história está cheia de exemplos disso! Quando as mulheres percebem que sua sobrecarga, que seu sofrimento não é algo individual, não é por sua culpa ou por sua fraqueza, mas algo do coletivo social, elas ganham força para questionar. Compartilhando percepções se constroem estratégias de enfrentamento da situação e a possibilidade de mudança começa a surgir. Quando o coro de mulheres começa a gritar que “assim não”, esse é o barulho que sinaliza a mudança.

 -Como a sociedade a recebe?

 A sociedade é programada para a inércia, para manter o status quo. E geralmente é violenta em relação ao diferente! Não o aceita, exclui, descredibiliza, martiriza! Haja visto que os avanços em relação aos direitos das mulheres só vieram depois de muita luta! É comum que uma mártir seja necessária para que a sociedade se mobilize para coisas bem óbvias, como é o caso da Lei Maria da Penha.

Há uma resistência à mudança até que haja força suficiente para mover as engrenagens. Só então os redesenhos são feitos.

Não devemos ter a ingenuidade de pensar que a sociedade vai estender o tapete vermelho para quem deseja que ela se reorganize. Vamos enfrentar resistências, mas estas, em última instância, são ativadoras de forças poderosas.


-As novas gerações não parecem seguir esse fluxo. Qual o peso desse sinal de mudança?

As gerações se apoiam nos ombros de suas antecessoras. De uma para a outra, os pequenos questionamentos vão se tornando grandes movimentos, vão ganhando a reflexão e a força necessária para a revisão e transformação do “programa”. Começa com micro-percepções e culmina nas grandes revoluções.

Nossa geração está adoecida, sobrecarregada, exausta e frustrada e isso traz sofrimentos para nós, mas também para os que vem depois e vivem as consequências desse modelo. As mulheres mais jovens nos observam em nosso caos, enquanto acreditamos estar fazendo “o certo”. Elas não querem essa vida, rejeitam o que pra nós significa status, como fizemos em relação aos nossos avós e pais, e começam a repensar as escolhas automáticas que a sociedade nos empurra como naturais.

Claro que todo modelo tem suas vantagens e desvantagens e nem sempre é possível perceber exatamente onde a mudança precisa ser feita. Mas me parece muito interessante poder questionar a nossa relação compulsória com o casamento e a maternidade, com os modelos de trabalho e a quantidade de energia e tempo que dedicamos a ele.

Existe um grupo que está refletindo, repensando, questionando, avaliando e escolhendo de forma distinta. Isso pode resultar em mudança mais ou menos rapidamente. Não sabemos exatamente quando ou onde se dará o ponto da virada. Mas sabemos que somos testemunhas do nascimento de uma quebra de paradigma. Haverá julgamento e resistência! Que estejamos do lado que se propõe a ajudar!

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