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As crianças precisam caber no lattes
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Sara Oliveira é repórter especial de Cidades do jornal O Povo há 10 anos, com mais de 15 anos de experiência na editoria de Cotidiano/Cidades nos cargos de repórter e editora. Pós-graduada em assessoria de comunicação, estudante de Pedagogia e interessadíssima em temas relacionados a políticas públicas. Uma mulher de 40 anos que teve a experiência de viver em Londres por dois anos, se tornou mãe do Léo (8) e do Cadu (5), e segue apaixonada por praia e pelas descobertas da vida materna e feminina em meio à tanta desigualdade.

Sara Oliveira cotidiano

As crianças precisam caber no lattes

Professora teve parecer sobre pedido de bolsa afirmando que "provavelmente suas gestações atrapalharam" a realização do pós-doutorado fora do País
capa Mulheres na Ciencia (Foto: Isac Bernardo)
Foto: Isac Bernardo capa Mulheres na Ciencia

“A Laura cabe no meu lattes”. Eu li essa frase e na sequência ouvi a doutoranda Liliane Luz falar, emocionada, a data de nascimento da filha. Entre os títulos destacados na apresentação do currículo lattes da professora universitária, está “o mais importante: mãe da Laura (nascida em em março de 2016)”. Jornalista, mãe, parceira, ela diz que chorou ao saber sobre o parecer do CNPq ao pedido de bolsa de produtividade em pesquisa (BP) feito pela professora da Universidade Federal do ABC, Maria Carlotto. O caso teve repercussão no fim de 2023.

A análise feita pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - que negou a concessão à Carlotto - afirmava que “provavelmente suas gestações atrapalharam” a realização do pós-doutorado fora do País. A BP é uma bolsa considerada de alto nível no CPNq, sendo um bônus para pesquisadores e pesquisadoras que cumprem critérios de produção científica, participação na formação de recursos humanos e contribuição para a área de pesquisa. Hoje, no Brasil, das 15.850 bolsas de produção, apenas 35% são destinadas a mulheres.

A queda de produção das mulheres quando engravidam é comprovada por diversas pesquisas e está em diferentes profissões e contextos sociais. No universo da Ciência, onde o lattes vale mais do que muita coisa, a desigualdade de gênero fica explícita mais uma vez, com números, relatos e pareceres como o da professora Carlotto.

E só seria diferente se a maternidade fosse vista de forma coletiva, não individual. Dentro das universidades, onde se formam profissionais, o entendimento sobre a desigualdade que coloca a mãe em desvantagem deve ser regra. E precisa ser respaldado por políticas públicas que amenizem essas diferenças e estejam conectados às condições sociais atuais.

Na série de matérias premiadas Mulheres na Ciência, escrita pela repórter do O POVO Catalina Leite, um dado da Parent Science, grupo de mães e pais que discutem parentalidade na Ciência, escancarou essa realidade. Apenas 47,4% das professoras e pesquisadoras conseguiram submeter artigos científicos como planejado durante a pandemia.

Nos depoimentos sobre o isolamento social, mulheres contam que trabalhavam 12 horas seguidas, que viam grupos de professores combinando de aproveitar que estavam em casa para produzir mais artigos, enquanto elas perdiam a rede de apoio - quem tinha - precisavam cuidar dos filhos, da casa e do currículo lattes. Tudo ao mesmo tempo, em meio aos mortos da Covid.

Enquanto uma instituição especialista em fomentar habilidades e conhecimentos para o mundo não considerar que gravidezes não atrapalham, estaremos longe de um futuro realmente melhor. Que reconheça o valor de uma profissional que trabalha enquanto amamenta um filho e orienta o outro na aula online. Que lhe dê oportunidades que compensem o que a sociedade lhe impôs a fazer, que é acumular diferentes ocupações de forma injusta.

A Liliane doutoranda no Programa de Pós-graduação em Linguística na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), professora universitária e mãe da Laura, alcançou os requisitos que um currículo lattes exige e chegou ao Doutorado. Isso foi possível não porque as instituições de ensino entenderam a peleja que ela passa e fizeram seu papel de incluir considerando dimensões de gênero. Mas foi graças a uma rede de apoio eficaz e à sua orientadora, uma mulher, mãe e cientista.

 

Entrevista com especialista 

Fiz algumas perguntas à Prof.ª Dr.ª Maria Eduarda Gonçalves. Ela é professora do Curso de Graduação em Letras (Uece), do Curso de Graduação em Letras (UFC), do Curso de Especialização em Semiótica Aplicada (Uece) e pesquisadora em Discurso, Mídia e Política. Questionei sobre as lacunas ainda existentes, sobre a importância de políticas públicas e editais oara mais equidade e igualdade de gênero na Ciência e sobre os muitos vieses para contratações de mulheres para cargos superiores dentro das universidades.

Professora Maria Eduarda - O primeiro problema é a discriminação de gênero estrutural. No mundo todo, há iniciativas que buscam incentivar o ingresso e a permanência de mulheres na ciência. O próprio CNPQ possui diretrizes a propósito desse incentivo. No entanto, o que ocorre no nível das práticas reais, dentro dos departamentos das universidades, são ações que reforçam a desigualdade de gênero.

A presença de mulheres se torna cada vez mais rarefeita à medida que se eleva o nível da carreira acadêmica: por exemplo, não há diferenças significativas na produção científica entre homens e mulheres, mas a disparidade é assustadora nos cargos de liderança e na distribuição das bolsas de produtividade pelas agências de fomento.

O segundo problema é o paradoxo da representação da mulher cientista. Quando se defende a presença da mulher na ciência, estamos falando de que mulher, ou melhor, de quais mulheres? Na minha pós-graduação, um professor me advertiu para não ter filhos durante o curso. Colegas de pesquisa já foram orientadas sobre seus relacionamentos (se deveriam ou não se casarem), outras sobre sua rotina (em relação a cuidar dos pais, da casa, etc.). Esses são apenas alguns episódios que ilustram um paradoxo cínico: pretende-se incluir a mulher, mas excluindo exatamente os elementos que impedem a sua real inclusão. Ora! Mas são, precisamente, os fatores que sobrecarregam, condicionam e dificultam o exercício da pesquisa por mulheres que devem ser contemplados na dinâmica de inclusão.

O terceiro problema é o isolamento da luta pela equidade de gênero na ciência. Enquanto a luta for considerada uma pauta que interessa exclusivamente aos cientistas e, entre eles, mais especificamente às mulheres cientistas, dificilmente haverá avanços efetivos. Para viabilizar um cenário de mudança, é absolutamente necessário encarar a questão como ela realmente é: trata-se de uma disputa que deve ser levada para o plano institucional das políticas públicas e que deve chegar aos mais variados espaços de deliberação, por envolver os princípios democráticos fundamentais da cidadania, da igualdade e da justiça.

No próximo mês, em fevereiro, celebra-se o Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, data definida pela Assembleia Geral da ONU em 2015. Será mais um espaço de luta.

Avante!

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