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"Fortaleza é farol para outras cidades nas políticas de primeira infância"
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Jornalista, Professora, Empreendedora social, Mestre em Educação (UFC). Nesta coluna Cidade Educadora, escreve sobre os potenciais educativos das cidades, dentro e fora das escolas

"Fortaleza é farol para outras cidades nas políticas de primeira infância"

Em entrevista exclusiva à coluna, Cláudia Vidigal, representante da Fundação Van Leer no Brasil, fala da importância de desenvolvermos cidades mais acolhedoras para crianças e cuidadores
Cláudia Vidigal (Foto: Divulgação/Marlon Diego)
Foto: Divulgação/Marlon Diego Cláudia Vidigal

Como deve ser pensada e estruturada uma cidade ideal para crianças viverem, pelo ponto de vista delas próprias? A Urban95 nos convida a experimentar olhar para a cidade de uma altura de 95 centímetros do chão.

E esse novo ângulo muda tudo, de acordo com a psicóloga Cláudia Vidigal, que representa a holandesa Fundação Van Leer no Brasil, organização idealizadora da ação estratégica Urban95, que considera a experiência de uma criança de três anos de idade — que, em média, mede 95cm — como ponto de partida para repensar os espaços urbanos.

A Rede Urban95, no Brasil, é formada por 65 municípios das cinco regiões do país que compartilham o objetivo de desenvolver e fortalecer programas e políticas voltadas à primeira infância.

Todos os gestores das cidades que integram a Rede Urban95 e parceiros técnicos de diferentes áreas, junto com representantes do governo do Ceará e renomados especialistas em infância, como o pediatra Daniel Becker, estarão presentes no próximo mês, na Capital.

Nos dias 6 e 8 de agosto, Fortaleza será sede do Encontro Nacional Urban95, realizado pela Fundação Van Leer, Centro de Criação de Imagem Popular (Cecip), Descobrir Brincando e Prefeitura de Fortaleza.

Em entrevista exclusiva para a coluna Cidade Educadora, Cláudia explica melhor a proposta da Urban95 de incorporar as lentes da primeira infância na gestão das cidades, promovendo interações positivas, contato com a natureza, proximidade das famílias com programas e serviços públicos, além de mudanças duradouras nos cenários que moldam os primeiros anos de vida.

Ela explica mais também sobre o Encontro que promete ser um marco na jornada coletiva pela construção de cidades mais justas e acolhedoras para bebês, crianças pequenas e seus cuidadores.

Coluna Cidade Educadora -  A Urban 95 possui hoje lugares estratégicos, no mundo e no Brasil, que desenvolvem projetos de cidades mais acolhedoras para crianças. Fortaleza é uma delas. Como se chegou à concepção de que o próprio olhar das crianças pequenas seria o mediador de ações tão transformadoras e por que nos espaços urbanos?

Cláudia Vidigal - A iniciativa Urban95 é uma iniciativa global da Fundação Bernard Van Leer que se deu conta de que muitas das políticas que poderiam favorecer o desenvolvimento integral das crianças aconteciam, de fato, nas cidades. No ano passado, pela primeira vez no mundo, a população urbana superou a população rural.

O mundo está se urbanizando, mas será que a gente compreendeu o impacto dessa urbanização no desenvolvimento integral das crianças?

Ainda mais nas cidades em que o ritmo acelerado não permite que as crianças possam se encontrar, possam ter o seu tempo de brincar, ter o seu senso de pertencimento na comunidade. Então, foi um pouco inspirado por esse movimento de urbanização e pela aposta de repensar as cidades tendo a criança no centro - as pessoas no centro, mas, sobretudo, as crianças no centro.

A Urban 95 propõe esse people-centered city no urbanismo, um urbanismo centrado nas pessoas e, principalmente, nos sujeitos de direitos de 0 a 18 anos, e com especial atenção à primeira infância.

Coluna Cidade Educadora - Há circunstâncias, contextos sociais, no Brasil, que, de alguma forma, favoreceram a Implantação do projeto de cidade melhor para crianças, para além do fator comum mundial da urbanização?

Cláudia Vidigal - Então, a iniciativa global começa em diversos países onde a Fundação Van Leer já atua. Aqui no Brasil, a gente vê um momento muito apropriado de iniciar uma nova trajetória com as eleições municipais que tinham acontecido no ciclo anterior.

Então, a gente começa [no Brasil] com três cidades, Boa Vista, São Paulo e Recife. Logo depois, ampliamos para mais 10 cidades, e depois mais 10, mais 5. A gente fica com 28 cidades nesse primeiro ciclo. E Fortaleza entra logo nesse começo da rede Urban95.

Porque, primeiro, a gente olhou para algumas cidades isoladamente, mas depois falou: “não, o que a gente precisa é de uma rede de cidades em que uma cidade possa aprender com a outra”.

Muito mais do que aprender com especialistas, com técnicos, com urbanistas, com psicólogos, é as cidades contarem umas para as outras em qual aspecto elas já conseguiram avançar.

Coluna Cidade Educadora - Quais características Fortaleza já possuía, em termos de políticas públicas para as infâncias, que se alinhavam com a proposta da Urban95?

Cláudia Vidigal - Fortaleza é a primeira Capital do Brasil a ter Plano Municipal de Primeira Infância, portanto, já possuía uma política estruturada, longeva, com um comitê intersetorial, uma coordenação de primeira infância.

Além disso, Fortaleza conseguiu agregar três pilares que compõem a Urban95 de uma forma muito bem-sucedida. Claro que há muito ainda por fazer, mas esses três pilares estão presentes e são muito fortes em Fortaleza.

Primeiro pilar é a governança e a institucionalidade, que é quando a gente fala do Comitê Intersetorial, do Plano Municipal de Primeira Infância, de a gente ter a política de primeira infância como uma política que não é só da Educação, da Assistência, da Saúde, do Urbanismo. É uma política integrada.

Então, em Fortaleza a gente realmente reconhece essa trajetória, em especial, pelo Plano Municipal ser o mais antigo do Brasil, mais maduro, se a gente considerar as Capitais.

O Segundo Pilar é o de programas e de serviços. Estamos falando das secretarias finalísticas. Não dá para pensar em uma cidade boa para a primeira infância se a gente não tiver vacinação, se a gente não tiver creche, se a gente não tiver CRAS (Centros de Referência Especializado da Assistência Social), se a gente não tiver [o projeto] Família Acolhedora, para um acolhimento mais humanizado do que os abrigos institucionais. Fortaleza tem uma trajetória bastante importante no que tange a programas e serviços voltados à primeira infância.

No Terceiro Pilar, por fim, entra o urbanismo. Em Fortaleza, encontramos uma cidade que já tem uma maturidade na perspectiva do urbanismo social. Fortaleza já olhava para o seu planejamento urbano compreendendo que a maneira como o território se atualiza, se movimenta, como as pessoas se relacionam com o território vai trazer culturas diferentes.

Eu acho que isso é também bastante inspirado por um problema evidente e importante da
cidade, que é o problema da criminalidade. Não só de Fortaleza, mas em muitas outras cidades no Brasil.

Porém, Fortaleza enfrenta desafios na criminalidade e começou a compreender a situação fazendo esse mapa da criminalidade, entendendo que a criminalidade acontece nos territórios, nas comunidades por falta de integração, de reconhecimento da comunidade como uma comunidade de cuidado, de cuidado mútuo, de empatia.

Então, esse processo todo vai sendo nutrido desde o último ciclo [político] e continua no atual por essa ideia de ocupação dos espaços públicos de forma mais saudável.

Coluna Cidade Educadora - E Isso passa pela política dos microparques e dos parques naturalizados.

Cláudia Vidigal - Isso! Essa foi uma das principais iniciativas que a gente viu, que, primeiro, eram chamadas de microparques e foram se tornando os microparques naturalizados. Fortaleza compreende que essa política pode ser uma política específica para favorecer a primeira infância e os cuidadores.

A gente costuma dizer que crianças brincando nas cidades são como os vagalumes na florestas, são como indicadores de saúde das cidades. Então, Fortaleza mapeia esses 30 espaços, que, depois, se ampliam para 60 espaços.

Eu sei que mais de 30 já foram realizados e fomos avançando numa política que é de microparques para a primeira infância e parques naturalizados.

Encontro Nacional(Foto: Divulgação/Beatriz Bley)
Foto: Divulgação/Beatriz Bley Encontro Nacional

Então, a gente começa a trazer a primeira infância na cidade de Fortaleza para se configurar como um caminho de resiliência climática, de adaptação climática, como uma aliada nesse processo todo. Acho que isso é a grande beleza e a inovação de Fortaleza.

Isso é possível não só pela Urban95, mas porque Fortaleza já tinha um núcleo de urbanismo olhando para isso e, de repente, compreendeu que esse movimento todo do urbanismo social e do planejamento urbano podiam estar muito mais linkados aos direitos das crianças e também à resiliência e à adaptação climática.

Então, foi um jogo em que todos ganhamos com os microparques como política para as crianças, e que depois migrou ainda mais, pela intersetorialidade, para dentro das escolas com os pátios naturalizados.

É a ideia de ir quebrando concreto, de ir criando espaços mais permeáveis, mais sombreados, mais naturalizados, de ir gerando o desemparedamento das infâncias, principalmente, nas creches e na educação infantil como uma estratégia de reconexão com a natureza, que é algo tão importante para todas as crianças.

Coluna Cidade Educadora - Em um panorama geral, qual o principal desafio hoje de estruturarmos cidades mais acolhedoras às infâncias e aos cuidadores?

Cláudia Vidigal - Eu acho que existe uma narrativa da importância da primeira infância que ainda não se concretiza nem no orçamento e nem nas práticas, e aí, de todos nós.

Eu acho que a gente ainda tem um passo importante a dar no sentido de favorecer o orçamento para a primeira infância e qualificar e ter cada vez mais programas e serviços escalados, próximos às famílias.

Porque a Urban95 é isso também. Proximidade é cuidado. Serviço próximo à família é o que faz a diferença. Uma família muito vulnerável tem muita dificuldade de ir em uma UBS (Unidade Básica de Saúde), se ela está lá no outro território.

Se a família tem três filhos, com um ainda sendo amamentado, por exemplo, tem mais dificuldades. Então, proximidade é cuidado.

É necessário fazer esse mapeamento dos territórios mais vazios dos programas e serviços, para a gente conseguir ofertar serviços nesses espaços. Esse é um grande desafio. Que os serviços sejam descentralizados e cada vez mais próximos às famílias, sobretudo, as que mais precisam.

Coluna Cidade Educadora - Mesmo com a anuência das cidades à parceria com a Urban95, vocês sentem dificuldades de se instalar em alguns territórios?

Cláudia Vidigal - A adesão à rede é uma adesão voluntária. Nesse momento, a gente não convida a cidade. É ela que solicita adesão à rede e, portanto, isso já é uma manifestação de interesse.

Nós somos uma fundação que tem uma reputação e um conhecimento técnico ligado a políticas municipais de primeira infância que eu acho que tem aí um reconhecimento. Mas, em termos de financiamento, nós não somos o Banco Mundial, não vamos chegar com caminhões de dinheiro para as cidades.

Então, as cidades que estão nos buscando, estão, de fato, interessadas em refinamento de política pública, em um olhar mais crítico e atencioso aos investimentos públicos que já estão sendo planejados pelas cidades e que podem ser qualificados pelo nosso olhar.

Então, esse desejo de troca a partir de um distanciamento da prática, para olhar a distância e falar: "bom, nisso nós estamos brilhando, mas nisso ainda não”. Assim, os microparques e as políticas de escala deles é um caso de sucesso. Não dá pra negar. Mas a gente ainda tem muitos desafios, como os de manutenção.

Coluna Cidade Educadora - Verdade. Quem vive a cidade com as crianças, principalmente, percebe espaços de lazer muito bons que, poucos meses depois de inaugurados, já sentem a ausência de uma manutenção frequente. Mas essa manutenção também passa pela consciência de que o que é público é meu e eu preciso cuidar, não é?

Cláudia Vidigal - Exato! Acho que Fortaleza também já deu passos importantes nesse sentido. Por exemplo, aquele projeto Leitura na Praça, em que as comunidades vão se responsabilizando, vão cuidando, elas próprias, dos espaços.

Coluna Cidade Educadora - E a chegada da Urban 95 no município também passa pelo envolvimento da comunidade, desde a idealização até a implantação e a qualificação dos projetos. Explica melhor como funciona.

Cláudia Vidigal - Isso mesmo. A comunidade é escutada desde o início, inclusive as próprias crianças participam com maquetes, com desenhos na construção dos espaços. Então, eu acho que esse protagonismo das famílias que trazem também suas demandas é super importante.

E o desafio desse engajamento de manutenção para a continuidade do que já foi implantado passa também por desafios estruturais, que ainda temos muitos.

Às vezes, fazemos o microparque naturalizado, mas não temos um sistema hídrico para regar as plantas e não perder, em épocas de seca, muitas das mudas que plantamos Então tem um processo de aprendizagem aí.

Por isso a importância da intersetorialidade: a secretaria do meio ambiente precisa estar junto para cuidar desses espaços. Essa responsabilidade precisa ser conjunta entre comunidade e prefeitura. E isso já está no artigo 227 da Constituição: é dever do Estado, da família e da sociedade assegurar com absoluta prioridade os direitos das crianças e dos adolescentes.

A comunidade precisa ter essa responsabilidade de participação nos espaços em que as crianças vivem.

Coluna Cidade Educadora - E o quanto é importante que a gente facilite, inclusive, a ocupação desses espaços pelas crianças e as ensine sobre essa manutenção de espaços que são delas.

Cláudia Vidigal - É preciso fazer a ocupação desses espaços, acreditar nesses espaços como espaços de pertencimento, de interações positivas que são transformadoras.

Coluna Cidade Educadora - E até para que essa acreditação nas ruas das cidades, nos espaços públicos, nas interações com as pessoas fora de casa seja também um retorno ao exercício social, uma alternativa que se contrapõe aos isolamentos adoecedores dentro dos apartamentos, dos condomínios, das telas, que hoje é um grande problema na educação de crianças e adolescentes.

Cláudia Vidigal - Isso! Sem dúvidas. É muito importante para a formação das crianças caminhar pela cidade, conhecer seus espaços de maneira segura e bem estruturada.

O Encontro de 2025 do Urban95 em Fortaleza está sendo também para celebrar o que já avançamos nesse sentido, e também pelo início de um novo ciclo municipal. A Prefeitura que assumiu - óbvio, com seus novos compromissos, com as críticas da gestão passada - mas, sobretudo, ela reassumiu o compromisso com a primeira infância.

Coluna Cidade Educadora - Conta um pouco mais sobre o que será vivenciado no Encontro Nacional da Urban95 em Fortaleza?

Cláudia Vidigal - O encontro Urban 95 tem um duplo objetivo: de Fortaleza se apresentar como cidade farol, que ilumina o caminho para outras cidades nas políticas de primeira infância, assim como Recife, Jundiaí e Boa Vista.

E um outro objetivo é o de ser uma anfitriã que possa favorecer a troca entre as cidades para que os gestores possam se conhecer e trocar, falar dos seus desafios, das suas conquistas, das oportunidades de avanços nas políticas públicas de primeira infância, em cada um dos municípios da Rede.

E tem municípios de todos os jeitos e perfis. Tem município pequenininho, tem município médio, grande, e em todas as regiões do país. É claro que o Ceará, como sempre, na linha de frente, com um grupo de cidades cidades bastante expressivo, porque na maioria dos estados tem uma, duas, três cidades. O Ceará possui oito cidades.

O encontro terá a participação das 65 cidades. Vai ter abertura não só das autoridades de Fortaleza, mas também do Estado. Vamos ter a abertura com o médico pediatra Daniel Becker, referência nos cuidados com as crianças de maneira integral.

Leitura Primeira Infância Fortaleza(Foto: Divulgação/Tainá Cavalcante)
Foto: Divulgação/Tainá Cavalcante Leitura Primeira Infância Fortaleza

E vamos fechar com a fala de uma liderança indígena, que traz muito essa perspectiva da cosmovisão do bem-viver.

Então, vamos fazer uma reflexão principal: uma vez que a humanidade fez essa escolha de viver em cidade, como a gente retoma essa escolha do bem-viver também, como desenhar esse nosso viver melhor? O

que a gente mais tem visto são pessoas reclamando do próprio estilo de vida, incomodadas com esse excesso de informação e de interatividades e, ao mesmo tempo, não sabendo como retomar esse comprometimento com a presença, com o bem viver. E a natureza aponta o caminho para nós. Não só para as crianças, mas para os adultos. Não é um luxo, é uma necessidade humana.

Confira os municípios que integram atualmente a Rede Urban95 no Brasil, organizados por estado:

AC – Brasiléia

AP – Laranjal do Jari

BA – Salvador, Uruçuca

CE – Campos Sales, Caucaia, Crato, Fortaleza, Icapuí, Itaiçaba, Sobral, Uruoca

MG – Alfenas, Belo Horizonte

MS – Alcinópolis, Maracaju

PA – Almeirim, Belém, Benevides, Paragominas

PB – Patos

PE – Caruaru, Recife, Santa Cruz do Capibaribe

PI – Teresina

PR – Assaí, Cascavel, Guarapuava, Irati, Londrina, Maringá, Paranaguá, Rio Branco do Sul

RJ – Niterói, Nova Friburgo

RR – Boa Vista

RS – Canudos do Vale, Canoas, Colinas, Cruzeiro do Sul, Eldorado do Sul, Estância Velha, Guaíba, Novo Hamburgo, Osório, Parobé, Pelotas, São Sebastião do Caí SE – Aracaju, Propriá

SP – Arujá, Campinas, Capivari, Diadema, Guarujá, Itaquaquecetuba, Jarinu, Jundiaí, Mogi das Cruzes, Mogi Guaçu, Morungaba, Santos, São José dos Campos, São Paulo, São Vicente, Várzea Paulista

Para mais informações sobre a iniciativa Urban95 e sobre o Encontro Nacional Urban95.  

Foto do Sara Rebeca Aguiar

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