Aos brados de “nossa história não começou em 1988”, atos no Ceará e em todo o País reverberavam na semana passada entre os povos indígenas, em alerta contra o projeto de lei nº 490/2007. Criticado por eles como um plano de "genocídio" por povos originários e entidades cearenses, o PL muda a demarcação de terras indígenas. Na opinião desses povos, as consequências podem ser irreparáveis.
O projeto surgiu para modificar o Estatuto do Índio. Foi desengavetado após 14 anos e foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados. No último dia 23 de junho passou o texto-base. A votação final foi em 29 de junho. O ponto mais preocupante para mais de 21 mil indígenas cearenses é o marco temporal: a proposta determina como terras indígenas aquelas que estavam ocupadas pelos povos tradicionais no dia 5 de outubro de 1988 — data da promulgação da atual Constituição, após 21 anos de regime militar e de tentativa de apagamento desses povos, tidos como inferiores e tutelados ante a aprovação do Estatuto do Índio em 1973.
A legislação atual prevê a abertura de processo administrativo dentro da Fundação Nacional do Índio (Funai), com avaliações de equipe multidisciplinar, incluindo antropólogos. Não há necessidade de comprovação de posse em uma data específica.
Representante da Comissão de Juventude Indígena do Ceará (Cojice) e integrante dos Tremembé da Barra do Mundaú, Ezequiel de Castro ressalta a vivência do seu povo e relembra que o PL pode interromper a expansão de terras indígenas no Ceará. "Acabar com a demarcação das nossas terras indígenas antes de 1988 encerra nossa autoafirmação e reconhecimento”, lamenta. “É como se a gente tivesse fugido do planeta. Mas sempre estivemos no Brasil, sofremos massacres de invasão e eles não reconhecem."
Ezequiel explica que a terra em que ele e sua gente moram foi demarcada em 2015 pela Funai, mas estudos sobre análise seguem em curso. Pelas regras do PL, seu povo não poderia estar mais ali e não poderia resguardar suas crianças e, prioritariamente, suas crenças. "O resultado é morte, sangue. Um grande extermínio", conversa, inquieto.
Outro ponto sério para os povos é a possível abertura de uma flexibilização do contato com indígenas isolados, aqueles que não conversam com a sociedade ou possuem uma relação bem restrita. Em seu artigo 29, o projeto cita o absoluto respeito às liberdades e meios tradicionais de vida, salvo para "prestar auxílio médico ou para intermediar ação estatal de utilidade pública." Mas não há especificações de quais seriam esses critérios.
Integrante da Organização dos Professores Indígenas do Ceará (Oprince), Thiago Anacé demonstra-se preocupado com a possibilidade de os povos isolados adoecerem nesse contato. "Estamos enfrentando a Covid-19, mas essas comunidades não são imunizadas para várias doenças que já temos vacina. Até a pandemia, não tínhamos a noção de como funcionava um novo vírus para uma determinada população", compara.
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Thiago está em acampamento na capital Brasília (DF) e acompanha a tramitação do PL. "Eu estou em Brasília e utilizando um celular, mas há pessoas que não têm acesso a isso. O que mais preocupa, ainda, é utilizar o PL como forma de levar progresso para esses povos. Qual a real perspectiva desse progresso?", questiona. E reforça: "Quando falamos que é genocídio, não é exagero."
Ele relembra o artigo 231 da Constituição, sobre os originários no Brasil. Segundo a Carta, cabe à União demarcar, proteger e respeitar as terras ocupadas em caráter permanente pelos indígenas. "As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis", destaca o trecho. Para ele, não há necessidade da PL, uma vez que o artigo já define os direitos necessários para esses povos. "No Brasil, banalizou-se a vida indígena. Enfrentamos diariamente preconceito e negação de nossa própria identidade. Não temos descanso", afirma.
A proposta de ajudar a reverter uma situação de miséria na qual os índios viveriam no Brasil foi citada pelo deputado Giovani Cherini (PL-RS) durante a votação do texto-base. "Índio não precisa mais de terra no Brasil, precisa de dignidade", relatou o integrante da bancada gaúcha. Já a primeira deputada indígena do Brasil, Joenia Wapichana (Rede-RR), acusou, à época, a Comissão de desrespeito às causas indígenas. "Nós temos ouvido aqui absurdos. Até tentativa de regularização de irregularidades, como garimpo em terras indígenas", afirmou.
Durante o debate sobre o Projeto Lei 490/2007, fui impedida diversas vezes de concluir o pronunciamento e ainda tive a representatividade questionada por alguns parlamentares da base do Governo. Isso é um total desrespeito! RESPEITEM OS POVOS INDÍGENAS! #PL490Nao pic.twitter.com/TToz3vZxXB
— Joenia Wapichana (@JoeniaWapichana) June 23, 2021
Babi Fonteles, antropólogo pela Universidade Federal do Ceará (UFC), ressalta que o marco temporal não tem fundamento científico e alerta para uma possível exploração das terras indígenas em caso de aprovação do projeto. "É preciso que o Estado brasileiro forneça as condições para que os indígenas conduzam suas vidas. Não somos nós que devemos dizer isso", recorda. "Quando o Estado demarca uma terra, é para os de fora não invadir."
Moradora da Terra Indígena Tradicional (TIT) do Povo Anacé, Aurea Anacé, aponta para um constante esquecimento dos poderes públicos contra os indígenas, mesmo com 10 mil pessoas convivendo na aldeia. Receosa com a aprovação da PL, ela destaca a consequência duplicada para as originárias: além das violações dos direitos indígenas, há também os direitos das mulheres em pauta.
Também secretária da Articulação das Mulheres Indígenas no Ceará (Amice), ela teme pela vida delas e por sua terra. "Nós, mulheres, já sofremos muitas violências há 500 anos", expõe. "Você vê muito choro. Não nosso, mas também de nossos ancestrais. Quem tá de fora, não vê esse choro todo. Mas ele está diariamente em nossos rios, em nossas árvores e nos nossos antepassados."
Nesta longa trajetória, o próximo passo do PL é ser apreciada no plenário. Caso aprovada, vai ao Senado para, se aprovado, receber sanção ou não de Jair Bolsonaro (sem partido). Babi considera desgaste federal em meio aos escândalos com a Covaxin e nutre uma esperança com a não aprovação do PL, mesmo com Bolsonaro ainda resistente com maioria no Congresso.
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Caso seja consolidada a aprovação do projeto, resta a persistência e denúncias com órgãos internacionais de Direitos Humanos, avalia Thiago. "Nos colocam no passado e não nos dão o direito à identidade e a nos renovarmos", conversa. Babi relembra ação de Bolsonaro em 2019 de tentativa de retirada da Funai do Ministério da Justiça para o Ministério da Agricultura e complementa: "Certamente o Brasil será indiciado na Corte Internacional pela Convenção n° 169 [da Organização Internacional do Trabalho (OIT)], que fere o acordo de não agressão aos povos originários”, espera.
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Projeto de lei tramita desde 2007. Foi proposta do deputado federal Homero Pereira, que morreu em 2013. O texto foi recuperado, tem como relator o deputado Arthur Maia (DEM-BA) e prevê alterações no Estatuto do Índio (Lei 6.001/1973).
- POR QUE É CRITICADO?
1. Empreendimentos
Retira o usufruto exclusivo de reservas indígenas que fiquem em áreas de interesse público da União. Assim, permite instalação em reservas de garimpos, hidrelétricas, empreendimentos de mineração, estradas e outros, sem consulta prévia às comunidades.
2. Povos isolados
Há 114 grupos indígenas no Brasil que escolheram não ter contato com a sociedade fora deles. Sobre esses grupos, diz o texto: "No caso de indígenas isolados, cabe ao Estado e à sociedade civil o absoluto respeito a suas liberdades e meios tradicionais de vida, devendo ser ao máximo evitado o contato, salvo para prestar auxílio médico ou para intermediar ação estatal de utilidade pública." A polêmica é sobre o que seria "ação estatal de utilidade pública".
3. Marco temporal
O projeto cria um limite temporal para demarcação de terras indígenas. Povos que reivindicam territórios precisam provar a ocupação dos locais até 5 de outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal.
Ocorre que muitos dos povos que não estavam nesses territórios em 1988 saíram de lá por terem sido expulsos pela força, por enfrentarem conflitos fundiários.
A questão é particularmente grave para os povos isolados, que não possuem documentação para atestar a presença na data.
4. Prazo de contestação
Hoje, qualquer pessoa pode contestar processo de demarcação de terras indígenas, mas deve fazer isso até 90 dias após publicação do relatório de identificação elaborado pela Funai. O PL490 permite contestação em qualquer fase do processo, que hoje já chega a se arrastar por décadas.
Quem defende: bancada ruralista e base do governo Bolsonaro
Status do projeto: aprovado na Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados.
Próximo passo: vai a votação em plenário entre os deputados. Se aprovado, o projeto segue para o Senado, onde seguirá a mesma tramitação, de comissões e plenário. Se for alterado, volta à Câmara para confirmação. Se for aprovado sem mudanças, segue direto do Senado para sanção do presidente Jair Bolsonaro, que pode validar o texto ou vetar em parte ou totalmente.
O que é
O STF julga reintegração de posse movida pelo Instituto do Meio a Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e indígenas do povo Xokleng. A Corte decidirá se terras habitadas pelas etnias Xokleng, Kaingang e Guarani podem ser reivindicadas pelo Estado de Santa Catarina e por proprietários rurais da região.
Tese
O julgamento decide justamente sobre o marco temporal, um dos aspectos do PL490. A questão é o direito de povos que não ocupavam o território em 1988 reivindicarem essa terra.
Impacto
Em 2019, foi definido que o caso terá repercussão geral. Ou seja, o que o STF decidir nesse julgamento valerá para os povos indígenas do Brasil inteiro.
Marco temporal: julgamento do STF é decisivo para futuro indígena
A discussão sobre o marco temporal permeia uma das decisões mais importantes do Supremo Tribunal Federal (STF) atualmente. O recurso extraordinário (RE) 1.017.365 discute reintegração de posse movida contra o povo Xokleng, em Santa Catarina, envolvendo uma área reduzida ao longo do século XX. O julgamento entrou em pauta no último dia 30 de junho, mas não houve tempo para análise do processo e será discutido no dia 25 de agosto — mês em que se comemora o reconhecimento internacional dos povos indígenas.
O pedido de reintegração de posse foi reconhecido pelo Supremo ainda em 2019. Movido pelo Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Funai e indígenas do povo Xokleng, os órgãos públicos pedem a reintegração de posse de terras da Reserva Indígena de Ibirama-La Klanõ, sob tutela das etnias Kaigang e Guarani, além da Xokleng. Já os originários solicitam a demarcação final do território.
Com a decisão, há consequências para todos os povos indígenas brasileiros: a sentença servirá como referência para todos os casos futuros envolvendo tais reservas em todas as instâncias do Judiciário. A discussão no Supremo envolve diretamente o ponto principal do PL 490/2007, que corre em paralelo. A tese do marco temporal estabelece que os povos originários só podem solicitar reconhecimento de territórios que já ocupavam quando foi promulgada a Constituição, em 1988.
Em carta ao STF, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) organizou assinaturas e solicitou proteção aos direitos indígenas. "O tratamento que a Justiça Brasileira tem dispensado às comunidades indígenas, aplicando a chamada 'tese do marco temporal' para anular demarcações de terras, é sem dúvida um dos exemplos mais cristalinos de injustiça que se pode oferecer a alunos de um curso de teoria da justiça. Não há ângulo sob o qual se olhe e se encontre alguma sombra de justiça e legalidade", diz o documento.
Aurinha Anacé, articuladora da Amice, vê o adiamento como tentativa de ganhar tempo, mas não vê como possível relaxar medidas de mobilização. "Eles quiseram nos tranquilizar, mas é isso que acontece: eles nos tranquilizam e depois vêm nos matar", lamenta. A líder indígena reforça que as mobilizações, tais quais as registradas no último dia 30 de junho, não serão paralisadas.
O assessor jurídico da Federação dos Povos Indígenas no Ceará (Fepoince), Weibe Tapeba, acredita em decisão positiva aos originários. "Essa é a oportunidade de o STF fortalecer o entendimento do artigo 231 da Constituição, que assegura o direito dos territórios indígenas e atribui competência à União. Mas também assegura que as terras são bens indisponíveis, inalienáveis e, os direitos sobre ela, imprescindíveis", analisa.
O integrante do povo Tapebas de Caucaia reitera as consequências da possível aprovação do PL e da decisão desfavorável do STF aos povos indígenas. "Apenas uma terra indígena no Ceará se encontra devidamente reivindicada e demarcada", diz, referindo-se ao Córrego João Pereira, em Itarema, da etnia Tremembé. As demais, seguem em diversos processos de reivindicação. "Metade das terras do Ceará estão sem providência", aponta.
No Ceará, a Reserva Anacé foi a primeira do Estado. Demarcada em 2018, o Governo comprou a área e criou a primeira reserva cearense. No Estado, são 14 as etnias indígenas reconhecidas, distribuídas em 19 municípios.