Era 22 de janeiro de 1965, antes de completar o primeiro dos longos 21 anos de tempo trevoso. O "Informe" do comissário de apenas dez linhas, datilografado, pareceu ter sido feito para mostrar serviço ao chefe. Tamanha era a banalidade.
Porém, no alto da folha em papel timbrado, ao lado do brasão do Estado do Ceará, destacava o termo: "R_e_s_e_r_v_a_d_o". E em letras garrafais: "DELEGACIA DE ORDEM POLÍTICA E SOCIAL".
O dito "agente" do DOPS relata que "num dos ônibus que faz a linha do bairro Floresta", "um de nossos auxiliares" (informante) colou numa conversa alheia.
Teria conseguido ouvir dois "fichados e prontuariados na seção competente desta DOPS (o documento cita os nomes, opto por não informar), os quais conversavam sôbre Juscelino K. de Oliveira e as casas em que residem".
O documento prossegue: "Procurando se inteirar do que de real se passava com as casas da Vila da RVC, veio a saber que êles têm prazo marcado para desocupar as mesmas, pois vão ser vendidas a funcionários da Rffsa e êles não têm direito à compra das citadas casas. Foi só o que soube o auxiliar".
RVC fôra a Rede de Viação Cearense, ex-gestora das ferrovias locais depois incorporada pela federal Rffsa. Os dois passageiros aproveitavam a viagem no ônibus para assuntar sobre vida comum. Mas o tal informante achou suspeito. O nome do comissário também está poupado, pelo equilíbrio dos anonimatos.
Qual terá sido o desfecho de um relatório tão vazio? Muitas vezes foi assim. Um "agente", "comissário", "investigador", era "designado para acampanar 'fulano de tal' secretamente". Alguém tachado de "subversivo", "comuna", "fichado", "vermelho". Expressões e termos nos papéis do acervo maldito.
Página infeliz de nossa história, mas que é importante revisitar. Está no Arquivo Público do Ceará (APCE).
Por qualquer coisa surgia uma comunicação no expediente da temida Delegacia. Carimbavam como "secreto", "sigiloso", "reservado", "confidencial".
Rumores tornavam-se conspiração. Eles detestavam a alcunha de araponga, referência à ave estridente. O apelido dado aos espiões foi justamente porque alguns deles não sabiam nem passar despercebidos.
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Três dias antes, o mesmo comissário havia contado de outra barbeiragem em documento. Um agente achou que não estava sendo notado quando tentou xeretar a roda de conversa. Entre aqueles, um jornalista que era vigiado havia dias. Mas foi o xereta se encostar, o grupo se dispersou (já haviam notado a arapongagem).
"Antes que o agente respondesse, e estando com um papel na mão em que anotava os movimentos de 'fulano'(o jornalista vigiado)", um daqueles "tentou arrebatar o papel da mão do agente no que foi evitado por êste". Nem o cuidado de disfarçar o caderninho de espião ele teve.
A trapalhada foi confirmada ao chefe: "Desconfiando tivesse sido percebido, o agente (nome) tratou também de tomar seu rumo, deixando o agente (outro) no encalço dos citados elementos".
Até bordel, na Praia de Iracema, passou por campana. A "investigação em caráter estritamente sigiloso" era seguir uma jovem e seu círculo de amizades. Quatro agentes, julho de 1967, missão de nove dias. Ordem expressa do secretário da Segurança Edilson Moreira da Rocha.
Uma das amigas vizinhas da moça investigada foi descrita como "especialista em aliciar casais (cafetina)". Usaria o salão de beleza como "disfarce para coito sexual". E outra foi identificada como "funcionária da Assembleia", usava também sua casa como "um chatô".
Uma terceira recebeu a mesma citação no relatório, de cinco páginas. E mais três vizinhas foram mencionadas pejorativamente ("amaziada", "mulher fácil", "desquitada") O documento teve fotos, quadros, histórico dos fatos.
O motivo da investigação seria porque a jovem estaria namorando o filho de um político importante. A mãe dela teria dito aos arapongas que o casório "tinha de acontecer em dezembro" e que contratara até um "macumbeiro".
Provavelmente essas senhoras ou o pai de santo acionado teriam posto o governo da época em perigo, não fossem os arapongas. O dinheiro público custeou essa missão.