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Aquela estrela é dele
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Aquela estrela é dele

| Aniversário | Voz mais forte entre as projetadas no Ceará dos anos 1970, Raimundo Fagner completa 70 anos cantando, compondo, polemizando e lotando casas de show
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FORTALEZA, CE, BRASIL,10.10.2019: Raimundo Fagner, músico.   (Fotos: Fabio Lima/O POVO) (Foto: Fabio Lima)
Foto: Fabio Lima FORTALEZA, CE, BRASIL,10.10.2019: Raimundo Fagner, músico. (Fotos: Fabio Lima/O POVO)

Definitivamente, Fagner não é uma unanimidade nacional. Muito pelo contrário. Dono de opiniões fortes, posições independentes e talento nato, ele trilhou uma estrada de sucesso na música popular brasileira que já soma 46 anos, mas angariou desafetos e polêmicas. Sem nunca ter integrado movimentos ou se limitado a rótulos, o cearense nascido em Fortaleza e crescido em Orós buscou o sucesso popular e o encontrou. Hoje, 13 de outubro, o filho do seu Fares e da dona Francisca completa 70 anos tendo do que se orgulhar e do que se defender.

Raimundo Fagner Cândido Lopes nasceu na rua Floriano Peixoto, número 1779, no Centro de Fortaleza, em 13 de outubro de 1949. Crescendo entre a cidade natal e as férias em Orós, acabou adotando as duas cidades como sendo suas. Com apenas seis anos, participou de um concurso musical em homenagem ao Dia das Mães, promovido pela Ceará Rádio Clube, e tirou o primeiro lugar na categoria "melhor intérprete mirim" cantando Minha Mãezinha Querida. O prêmio: mil réis e uma caixa da sabão Pavão. "Fiquei fascinado com todo aquele ambiente: bastidores, músicos da orquestra, plateia. Gostei de tudo, mas só voltei à cena ao completar 15 anos para fazer meu primeiro teste de calouro na Rádio Iracema, cantando o sucesso italiano da época: Il mondo", conta o próprio Fagner no livro, Quem me Levará sou eu, lançada este ano.

A biografia, assinada pela jornalista Regina Echeverria, é o relato mais completo que se tem da vida e obra do intérprete que surgiu em meio a uma geração luminosa da música nordestina. Ainda assim, o livro, com um claro propósito de melhorar a imagem do biografado, deixa uma sensação de que ainda há muito por ser dito. Na mesma época em que ganhavam as rádios do Brasil nomes como Amelinha, Ednardo, Fausto Nilo e outros, Fagner seguiu seu caminho até se tornar uma potência na música brasileira. Nessa estrada, fez amigos e desafetos, jogou bola com Chico Buarque, disputou espaço com os compositores baianos, ganhou respeito internacional, rompeu com contemporâneos como Belchior, com quem compôs - no Bar do Anísio - seu primeiro clássico: Mucuripe. Ainda hoje, há que o descreva como gente boa e humilde e quem o acuse de virar as costas para os conterrâneos.

A propósito, foi Mucuripe que deu o primeiro lugar a Fagner no Festival de Música Jovem promovido pelo Centro Estudantil da Universidade de Brasília, em 1971. No mesmo festival, ele levou o sexto lugar com Manera Fru Fru Manera e o prêmio do júri de melhor arranjo e melhor intérprete com Cavalo Ferro (ambas parcerias com Ricardo Bezerra). As três premiadas entraram no disco de estreia de Fagner, Manera Fru Fru Manera, lançado em 1973 (inicialmente de fora, Cavalo Ferro foi incluída no repertório após a polêmica com a família de Cecília Meireles por conta de Canteiros).

Se o primeiro disco trazia uma mistura de rock, poesia popular, folclore, música nordestina e jovem guarda que parecia refrescante para a MPB, com o tempo o próprio cantor foi mudando o curso da carreira para uma seara mais popular. Nesse percurso, a voz rasgada, os agudos cortantes, a originalidade poética presente na interpretação de canções como Fracassos, Asa Partida, Sangue e Pudins e Vento Forte foram se diluindo. É fato que, nesse percurso, a obra de Fagner tomou outras proporções. Se aproximou do pop em Cartaz; rompeu fronteiras em Traduzir-se; abraçou o Nordeste numa parceria duradoura com Luiz Gonzaga; se assumiu popular em gravações como Borbulhas de Amor e Cabecinha no Ombro; soou clássico no disco Demais; buscou se atualizar na parceria com Zeca Baleiro. Nesse tempo, ele gravou ao lado de nomes tão díspares como Gabriel, O pensador, Cazuza, Roupa Nova, Roberta Miranda, Mercedes Sosa e o mestre do flamenco Paco de Lucia.

O último trabalho de Fagner, Pássaros Urbanos, é de 2014. Produzido por Michael Sullivan (autor de Deslizes), ele mistura canções inéditas com regravações de Paralelas (Belchior) e No Ceará é Assim (Carlos Barroso). Poucos anos antes, ele tinha feito dois shows em São Paulo dividindo o palco com o Cidadão Instigado. A parceria com um dos núcleos criativos mais fortes da cena indie nacional pareceu apontar para uma renovação na obra do cearense, o que não se confirmou. Conta-se que, por um desentendimento entre ele e banda, a parceria - que poderia ser bem interessante - deu em nada. Fagner passou os últimos dias em estúdio gravando um novo disco, o 37° da carreira. Quem é esse compositor que está em estúdio agora? Que histórias ele tem pra contar? Que novidades ele tem a mostrar? É esperar e saber o que ele tem a nos dizer.

FORTALEZA, CE, BRASIL, 07-10-2019: Ensaio de Fagner  - O Musical, promovido pela Fundação Raimundo Fagner no Cine São Luiz. (Alex Gomes/O Povo)
FORTALEZA, CE, BRASIL, 07-10-2019: Ensaio de Fagner - O Musical, promovido pela Fundação Raimundo Fagner no Cine São Luiz. (Alex Gomes/O Povo)

Musical celebra aniversário de Fagner

A Fundação Raimundo Fagner, criada pelo próprio artista em 2000 em sua cidade-natal, Orós, irá promover lá e em Fortaleza apresentações especiais em homenagem aos 70 anos do artista. Com ingressos já esgotados, Fagner - O Musical será apresentado hoje, às 18 horas, no Cineteatro São Luiz. Após a apresentação, o próprio artista subirá ao palco do equipamento. Para os fãs que não conseguiram os ingressos - que começaram a ser distribuídos gratuitamente na última terça, 8, e esgotaram no mesmo dia -, um telão montado na Praça do Ferreira transmitirá ao vivo toda a programação.

O musical faz parte das produções artísticas promovidas pela Fundação Raimundo Fagner, que atua na Capital e em Orós em áreas de acompanhamento escolar e formação artística em diferentes áreas musicais, como coro, flauta, percussão e violão. Cada sede atende cerca de 200 crianças e jovens de 7 a 17 anos. No musical que será apresentado no Cineteatro São Luiz, a regência é do maestro e coordenador musical da Fundação Eduardo Júlio Saboya. Já a assinatura da dramaturgia é da professora de teatro Mariana Elani Santos.

O espetáculo se desenrola a partir de um olhar imaginativo para a carreira de Fagner, pensando nos contextos que o cantor e compositor pode ter passado no processo de composição e gravação de cada uma das 12 músicas que compõem o repertório. Orós também receberá hoje programação especial alusiva aos 70 anos de Fagner, com apresentação do musical com os jovens e crianças atendidos no município cearense às 20 horas na Praça Anastácio Maia. (João Gabriel Tréz)

Fagner - O Musical

Quando: hoje, às 18 h

Onde: Cineteatro São Luiz (rua Major Facundo, 500 - Centro)

Ingressos esgotados. Pede-se que, na apresentação, o público que conseguiu as entradas leve uma lata de leite em pó para doação como ato simbólico. O espetáculo será transmitido em telão na Praça do Ferreira.

Raimundo Fagner ontem e hoje: escrevendo amor e arma

Raimundo Fagner se tornou, juntamente com outros, como Toquinho e Lobão, um exemplo contundente de que qualquer artista, por mais genial que seja, não está livre de cometer graves equívocos de avaliação política. Ao apoiar Bolsonaro nas últimas eleições, depois de ter apoiado Aécio Neves no pleito presidencial anterior, o compositor e cantor cearense relevou de modo imperdoável traços hediondos da figura do atual presidente (a homofobia, o desprezo pela ciência e pela cultura, o apreço à ditadura e a ditadores, o apoio à tortura, à liberação das armas, a promoção da censura, etc.) em nome do apoio à “diversidade regional e ideológica”. Esta atitude vinda de quem produziu obras-primas como “Mucuripe”, “Manera Fru Fru Manera” e “Asa partida” espanta quem espera dos bons artistas uma sensibilidade especial para amar todas as diversidades e se solidarizar com os excluídos e marginalizados, bem como uma compreensão mais clara da importância das conquistas sociais e políticas das últimas décadas agora ameaçadas pela extrema direita no poder.

Isso é ainda mais decepcionante quando se aquilata o quanto Fagner, ao surgir na cena musical brasileira nos anos 70, trouxe de renovação e de sangue novo para a cultura brasileira. Em relação ao canto, por exemplo, o jeito de cantar é inovador na nossa música. Ele inaugura um canto “rasgado”, semelhante ao dos penitentes ou das lavadeiras nordestinas, e o utiliza com perfeição para manifestar afetos passionais e outros sentimentos que demandam grande energia vocal. É bem verdade que esse tipo de canto metálico, em combinação com a exploração das zonas mais agudas da voz, foi utilizado também por Elba Ramalho, Ednardo e Rodger Rogério. Mas foi Fagner que o explorou de modo mais intenso e, ao invés de “domesticar” sua voz condicionando-a à exigência do “bom gosto” mercadológico (como fez, de certo modo, a cantora Elba Ramalho), ele a acentua e consegue atingir grande sucesso, chegando ao ápice com “Noturno” (Graco / Caio Silvio, 1979). Em combinação com esse “aço na voz”, ele explora surpreendentemente o chamado “falsete”, voz masculina executada acima da tessitura vocal do tenor, isto é, na faixa de frequência sonora em que normalmente atua a voz feminina (ouça a interpretação de “Sinal Fechado”, de Paulinho da Viola, no disco Raimundo Fagner (1976)). Essa fórmula, adicionada ao jeito de tocar violão, agressivo e nervoso, marcado por arpejos vibrantes e enérgicos, às vezes levemente distorcidos, gera uma harmonia tão perfeita entre violão e performance vocal que nos lembra a lograda por João Gilberto.

Ainda mais frustrados ficamos quando nos damos conta o quanto “paraíba” foi e ainda é o artista Fagner. Ritmos nordestinos como o xote, o xaxado, o baião e o frevo foram revalorizados, como mostram memoráveis gravações ao lado de Luiz Gonzaga, em 1984 e 1989, além da gravação de arrasta-pés como “Matinada” (Ernani Lobo, 1976), xotes como “Reisado” (Caio Silvio / Ferreirinha, 1980) dentre muitas outras. Também devem ser lembradas a parceria com Patativa do Assaré e a composição e gravação de frevos.

Pode-se dizer até mesmo que Fagner foi um tanto “globalista”. Paralelamente ao cultivo das tradições e ritmos populares cearenses e nordestinos, há um acentuado gosto pelo pop-rock inglês e norte-americano, que acaba por influenciar a forma de estilizar as canções provindas da tradição nordestina. É assim em “Riacho do navio” (Luiz Gonzaga / Zé Dantas, 1975). Nesse mesmo rumo cosmopolita está o audacioso LP Traduzir-se (1981), disco bilingue, em que o compositor celebra os laços hispanobraileiros.

No extremo, podemos até dizer que o músico Fagner foi um tanto socialista e nem falamos da boina de Che Guevara que ele usava nos anos 70, nem de sua amizade com Chico Buarque. Sua predileção por harmonias simples, baseadas em sequências de acordes naturais (não dissonantes) feitos no e para o violão popular faziam-nas músicas de rua (como ele canta na canção: “Em qualquer parte / na calçada ou no batente / eu me sento, eu me deito / e pego o meu violão...” - “Beco dos baleiros”, Petrúcio Maia / Brandão, 1975), músicas boêmias, não apenas de bar, mas do espaço indistinto entre o bar, a calçada e a rua; não apenas noturnas, mas também ancoradas nos espaços abertos e luminosos das praias e das pontes e calçadões praieiros de Fortaleza. Por isso e para isso, são canções de fácil execução, de harmonia simples e previsível, facilmente assimiladas até por violonistas pouco esmerados. Diferentemente da música mineira miltoniana e da bossa nova, que, por sua complexidade harmônica e melódica, ocasionam, nos momentos de pré-difusão e recanto, quase uma hierarquia entre os que tocam e cantam e os que apenas ouvem; na música do Fagner setentista, tocadores se revezam, letristas e poetas cantam e/ou tocam, a audiência participa ativamente tocando percussão informal ou improvisando a “segunda voz”, que as canções parecem planejadamente solicitar. E ainda por cima, Fagner foi responsável pela divulgação não apenas de vários compositores e cantores cearenses (como Cirino, Amelinha, Petrúcio Maia, Brandão, Fausto Nilo, Manassés, etc.), mas também de diversos artistas de estados vizinhos, como Robertinho de Recife, Zé Ramalho, Elba Ramalho, Clodo e Clésio, etc, no que contribuiu seu posto de diretor do selo “Epic”, da gravadora CBS.

A negação desse passado rebelde será sinal de que na alma do velho Fagner chegou ao fim a síntese dialética de sentimentos antagônicos manifestados em canções como “Santo e demônio” (Fagner / Ricardo Bezerra, por Amelinha, 1977) e “Traduzir-se” (Fagner / Ferreira Gullar, 1981), motor de sua energia criativa? A vereda de espinhos, o aço dos olhos e o fel das palavras levaram para longe as velhas estampas coloridas em papéis de chocolate que lhe cobriam as canções? O demônio venceu o santo e o artista desaprendeu como traduzir uma parte noutra parte? Ou já é antigo em seu inferno íntimo o pavor dos paraísos?

Nelson Barros da Costa, pesquisador de música e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC)

 

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