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Coragem para falar sobre assédio
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Coragem para falar sobre assédio

O medo de ser desacreditada, a exposição, a negação de que o assédio tenha ocorrido, o julgamento de si mesma, e a falta de apoio são apenas alguns dos muitos entraves para as mulheres procurarem ajuda
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Dor no assédio (Foto: gabriel)
Foto: gabriel Dor no assédio

Nos últimos anos, a tolerância com comportamentos machistas, que constrangem e violentam meninas e mulheres todos os dias, mudou. No Brasil e em outros países, pautas de movimentos feministas passaram a ser mais debatidas, assim como temas que antes permaneciam escondidos, como assédio e outras violências contra a mulher. Se antes falava-se pouco sobre eles, na última década, meninas e mulheres uniram-se para conversar, compartilhar as próprias vivências e fazer denúncias.

A maior consciência por parte das mulheres de que a culpa da violência sofrida não é da vítima é “uma das grandes vitórias” para Juliana de Faria, diretora da organização não-governamental (ONG) Think Olga. “Por mais que esse debate tenha se popularizado, por mais que uma lei (sobre importunação sexual) tenha passado em 2018, a verdade é que as mulheres ainda são assediadas nas ruas. Mas também é importante conseguir entender e celebrar os avanços, enxergar os passos que foram dados.”

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A campanha Chega de Fiu Fiu, realizada inicialmente por meio da internet pela ONG em 2013, é considerada um marco nessas discussões por Alice Bianchini, vice-presidente da Comissão Nacional da Mulher Advogada (CNMA) e da Associação Brasileira de Mulheres de Carreiras Jurídicas (ABMCJ). Pesquisa realizada pela Think Olga com 7.762 participantes mostrou, por exemplo, que 99,6% delas foram assediadas, 83% não gostava de ouvir cantada e 90% já trocou de roupa pensando no lugar ao qual iria por medo de assédio.

“Foi a primeira vez que se identificou que o que as pessoas achavam que era uma cantada, um elogio que as mulheres gostavam de ouvir, na verdade não (era). Na verdade, quem pensava eram os homens, porque nunca foi perguntado para as mulheres. Quando tivemos uma pesquisa para elas dizerem o que pensavam, foi considerado uma surpresa”, afirma.

A mudança na forma de encarar essas violências é fruto da luta de movimentos sociais de mulheres, assim como da mobilização da parcela mais jovem da sociedade. “São meninas muito novas que, por meio da internet, das mobilizações sociais nas escolas, no movimento estudantil, começam a pautar que não aceitam a violência sexual, a violência de gênero como algo natural”, avalia a psicóloga Maria Conceição Costa, articuladora do Nordeste da Articulação Nacional de Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadoras(es) (ANPSINEP).

Bianchini acrescenta que a conscientização do direito das mulheres teve eco em toda a sociedade, inclusive entre os homens. “O feminismo começou a ser falado nos bares, nos almoços de domingo, isso foi uma coisa muito importante.” Juridicamente, o conceito de assédio sexual está atrelado à “condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função” do agressor, segundo a Lei nº 10.224/2001.

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Assim, as cantadas não seriam enquadradas nela, e é necessário ter a percepção de quando a investida passa a constranger o outro. “O problema é que não temos essa tipificação. Na Itália você não pode fazer uma cantada na rua porque é crime. Aqui no Brasil, não. No máximo é importunação ofensiva ao pudor se tiver palavras de baixo calão, conotações sexuais”, explica Alice Bianchini.

Ao longo dos anos, após diversas discussões e campanhas sobre o assunto, um episódio em 2017, em que um homem ejaculou em passageiras de transportes coletivos em São Paulo, mostrou a necessidade de uma lei que contemplasse casos desse tipo. “Eram duas situações totalmente antagônicas imaginar que isso era estupro, que é um crime hediondo, e imaginar que era uma contravenção penal. E só tínhamos essas duas possibilidades. Ou seja: estava faltando alguma norma intermediária”, afirma.

No final de 2018, foi sancionada a Lei da Importunação Sexual (Lei nº 13.718/18), tipificando como crime atitudes como praticar atos libidinosos contra alguém sem o devido consentimento e publicar, divulgar ou compartilhar, sem permissão, fotos ou vídeos íntimos de uma pessoa. “É um avanço porque responde a uma reivindicação, a uma luta histórica e cotidiana dos grupos de mulheres em todo o País. O Estado se mobiliza porque as mulheres, muito antes, se mobilizaram dizendo que não aceitavam mais a situação”, avalia Maria Conceição Costa.

Porém, a psicóloga, doutoranda em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), destaca a desigualdade que atinge mulheres negras, indígenas e periféricas, agravada pelo cenário da pandemia de Covid-19. “Eu não consigo não fazer esse recorte de que, quando falamos dos movimentos de mulheres, dos avanços no enfrentamento a essas violências, há de se considerar no Brasil a desigualdade de raça e gênero.”

Hashtags: ativismo online

Ao longo dos anos, diversos movimentos nas redes sociais incentivaram que as mulheres compartilhassem as próprias histórias de assédios e violências sofridos ao longo da vida. No mundo, no Brasil e no Ceará, mulheres utilizaram as plataformas online para romper o silêncio que cerca o assunto. Conheça algumas dessas mobilizações:

2013
Chega de Fiu Fiu
Foi uma campanha de combate ao assédio sexual em espaços públicos lançada pela ONG feminista Think Olga em 2013, inicialmente nas redes sociais. O projeto teve desdobramentos como um estudo online, o mapa Chega de Fiu Fiu — que identifica o local onde ocorrem abusos —, o e-book "Meu corpo não é seu", uma cartilha sobre assédio sexual e um documentário.

2015
#PrimeiroAssédio
Também criada pela Think Olga, a campanha surgiu após diversos internautas fazerem comentários de cunho sexual sobre uma participante de 12 anos de um reality show infantil de culinária. Por meio da hashtag, mulheres compartilharam histórias sobre o primeiro assédio que sofreram, e a ONG constatou que a idade média da primeira ocorrência é aos 9,7 anos de idade.

#MeuAmigoSecreto
Em alusão à brincadeira das festas de final de ano, em novembro de 2015 as mulheres utilizaram o termo para denunciar atitudes machistas vivenciadas no dia a dia.

2017
#MexeuComUmaMexeuComTodas
Em março, após a figurinista Susllem Tonani, da TV Globo, acusar o ator José Mayer de tê-la assediado sexualmente durante oito meses, funcionárias da emissora fizeram um ato de apoio, vestindo camisa com a frase "mexeu com uma, mexeu com todas". Na internet, a campanha espalhou-se com o uso da hashtag. No dia seguinte às publicações, a emissora confirmou o afastamento do ator por tempo indeterminado.

#MeToo
Em outubro, o jornal The New York Times publicou denúncias de Harvey Weinstein, um dos maiores executivos de Hollywood, ter assediado e estuprado dezenas de mulheres, como as atrizes Rose McGowan e Ashley Judd. Alguns dias depois, a atriz Alyssa Milano fez uma publicação no Twitter sugerindo que mulheres que também haviam sido assediadas ou agredidas utilizassem a hashtag #MeToo em resposta a ela. Assim, milhares de pessoas — entre famosos e anônimos — compartilharam suas histórias nas redes sociais. Weinstein foi condenado a 23 anos de prisão em fevereiro de 2020.

2020
#Exposed
Usando essa hashtag junto ao nome da cidade, usuárias do Twitter têm denunciado assédio e até estupro. O movimento já expôs casos de Curitiba, Porto Seguro, Londrina, Brasília e São Paulo, entre outras cidades. O movimento chegou ao Ceará, com hashtags como #ExposedFortal e #ExposedSobral, inicialmente com relatos de adolescentes e jovens, na maioria meninas, vítimas de assédio sexual e divulgação indevida de fotos íntimas. Posteriormente, professores de escolas particulares da Capital também foram acusados. O caso está sendo acompanhado pela Polícia Civil do Ceará. No início de junho, também vieram à tona relatos com a tag #ExposedCariri.

Glossário

Abuso Sexual: contatos ou interações sexuais entre menino ou menina e pessoa com mais idade ou experiência. A criança ou adolescente é utilizada como objeto de prazer para outra pessoa satisfazer suas necessidades sexuais. Esses contatos ou interações podem ocorrer mediante força, promessas, coação, ameaças, manipulação emocional, enganos ou pressão.

Assédio sexual: ato libidinoso sem o consentimento da vítima, cometido por pessoa que tenha relação hierárquica ou de subordinação. Muito comum de ocorrer no trabalho e em ambientes escolares.

Importunação sexual: qualquer ato libidinoso cometido por homem ou mulher sem anuência da vítima, para satisfazer seu desejo sexual (passar a mão em partes íntimas, roubar um beijo, bolinar no transporte público etc.). 

Estupro: prática não consensual do sexo, que é imposta por violência ou ameaça de qualquer natureza. Qualquer forma de prática sexual sem consentimento de uma das partes, que envolva ou não penetração. 

Corrupção de menores: corromper ou facilitar a corrupção de menor de 18 anos, com ele praticando infração penal ou induzindo a prática. 

"Pornografia de vingança" ou "revenge porn": quando o criminoso manteve relação com a vítima e divulgou material íntimo dela para humilhá-la por causa do fim do relacionamento, por exemplo. O termo é considerado errado porque uma imagem íntima vazada nem é pornografia nem é uma vingança, pois uma vítima não comete ato ofensivo ao exercer o direito de terminar um relacionamento que mantinha. 

Hashtag: termo ou expressão antecedido pelo símbolo da cerquilha (#) usado nas redes sociais com o objetivo de direcionar o usuário para uma página de publicações relacionadas ao mesmo tema ou discussão. É usado no Facebook, Twitter, Instagram e em outras mídias sociais.

Print: fazer com que o exibido na tela do celular ou computador vire uma imagem que possa ser compartilhada.

Viralizar: tornar viral; fazer com que algo seja compartilhado por um grande número de pessoas.

Nudes: fotos sensuais e/ou de nudez enviadas pela internet.

Tweets: publicações feitas na rede social Twitter.

 

 

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