Durante décadas, os vira-latas foram alvo de preconceito. Eles eram vistos como cachorros de rua, sujos e bagunceiros. Não à toa, o escritor Nelson Rodrigues popularizou a expressão “complexo de vira-lata” para representar o sentimento de inferioridade de brasileiros diante de outras nações.
Apesar disso, eles se tornaram uma espécie de símbolo da brasilidade. Independentemente de bairro, cidade ou estado que esteja, basta caminhar por alguns minutos para encontrar um vira-lata pela rua.
Segundo a veterinária Bruna Farias Brito, isso acontece devido ao grande número de animais abandonados. Eles são difíceis de ser controlados, acabam cruzando e tendo filhotes. “Devido ao alto número desses cães, eles se tornaram mais visíveis e acabaram tornando-se populares, pois são facilmente encontrados pelo Brasil”.
Hoje, eles são os cachorros mais domesticados pelos brasileiros. Segundo o Pet Censo 2020 da DogHero e Petlove, eles ocupam a primeira colocação com 32%, seguido pelos Shih-Tzus com 12%.
Oficialmente os vira-latas são chamados de Sem Raça Definida (SRD) ou Sem Padrão Racial Definido (SPRD). Mas, afinal, o que define a raça de um cachorro? “Os padrões raciais são definidos e certificados por diferentes Kennel Clubs, que são organizações de criadores de cães”, explica a veterinária Jéssica Castelo.
Essas instituições são as responsáveis por emitir os famosos “pedigree” que são registros da origem de um cão de ‘raça pura’. “Esse pedigree é um tipo de ‘certificado de raça pura’ e somente é atribuído aos filhotes de dois cães que já possuem pedigree emitido pelo canil filiado à entidade onde nasceram”, diz Jéssica.
Ainda de acordo com a veterinária, os “vira-latas” são cães mestiços que não têm um padrão racial ou até mesmo uma linhagem genética definida. Ou seja, a cor da pele, a pelagem, o tamanho e o comportamento pode variar de cachorro para cachorro.
Um fio no Twitter que compilava as "misturas" mais comuns de vira-latas no Brasil, viralizou e chegou a mais de 87 mil likes. Entre a lista, feita pela usuária Barangurte, estavam: o "vira-lata pretinho", o "caramelo", o "pão de mel", e o "meio-poodle imortal" — o favorito das avós.
Claro que a classificação não passa de uma brincadeira, nada oficial. Como já explicado pelas veterinárias, eles são frutos da mistura de duas ou mais raças e não seguem um padrão físico ou comportamental.
Um estudo de 2018 realizado pelo projeto MuttMix, apontou que é praticamente impossível saber quais raças dão origem a um vira-lata a olho nu. Na pesquisa, foi apresentada a foto de 31 cães SRD para leigos e especialistas. Depois, cada voluntário teve de indicar as possíveis raças presentes nos genes daqueles animais.
Os resultados revelaram que apenas 25% dos participantes conseguiram adivinhar as raças com alguma precisão. Banjo, um dos cachorros que estavam envolvidos no estudo, por exemplo, registrou marcadores genéticos de mais de 15 raças diferentes.
Segundo Bruna Farias, o fato de os cachorros não terem um padrão e serem quase como uma caixa de surpresas diminui a procura. Quando se adota um vira-lata, muitas vezes, não é possível ter conhecimento sobre o tamanho e qual temperamento o cão pode desenvolver. São comuns relatos de abandono porque um cãozinho cresceu mais do que o esperado.
“Mas, esse cenário está mudando e a procura de adoção de cães Sem Padrão Racial Definido (SPRD) vem aumentando, principalmente depois da popularidade do 'vira-lata caramelo', devido ao seu companheirismo e resistência a doenças”, conta a veterinária.
Jéssica explica que “os cães de raça pura são fruto de uma seleção genética que ocorreu e vem ocorrendo ao longo do tempo. A fim de se obter indivíduos com características — principalmente físicas — cada vez mais específicas”.
Alguns desses processos de seleção, segundo a veterinária, são responsáveis por causar problemas que não são vistos em vira-latas. Como exemplo, ela cita os pugs e os bulldogs que, por conta dessa restrição de variação genética, possuem um focinho mais curto e achatado. Isso acaba por predispor o cãozinho a uma série de problemas respiratórios.
“Isso [a seleção genética] justifica o fato de alguns cães de raça ficarem mais doentes do que cães vira-latas, mas não significa dizer que os cães SRD não fiquem doentes e que não precisam de cuidados”, alerta Jéssica.