Entre palcos imaginários e microfones improvisados, a arte encontrou Lenice Ferreira ainda na infância. A multiartista cearense iniciou sua trajetória criativa aos 13 anos, quando escreveu seus primeiros poemas nas aulas de educação artística.
Além da arte, Lenice atua como ativista na luta contra a violência doméstica, pauta que passou a defender após ser vítima, passar por uma separação e a criação solo de dois filhos. Experiências que se tornaram temáticas de dois livros publicados.
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Para escapar das perseguições do ex-companheiro, deixou o Ceará e viveu em Maceió e Recife, retornando depois a Fortaleza, onde retomou os estudos e se engajou em iniciativas comunitárias, como um pré-vestibular popular no Bom Jardim.
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Aposentada do ofício de agente de saúde, Lenice reencontrou arte, inicialmente como forma de terapia e, depois, como prática coletiva e política. Nos últimos anos, ela fundou e passou a gerir o Ponto de Cultura Quintal Cultural Raimundo Vieira, certificado pela Secretaria da Cultura do Ceará (Secult-CE) e pelo Ministério da Cultura (MinC). Trabalho que equilibra com participações em saraus e festivais.
Atualmente dedicada ao estudo de música no Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ), ela é conselheira titular de políticas públicas para a cultura pela Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza (Secultfor). Em conversa, Lenice detalha a importância da arte, território e ativismo em sua trajetória.
O POVO - Para você, a arte também é um espaço para tratar de temas densos?
Lenice Ferreira - Sim. A arte tem o poder de provocar reflexão, por isso já foi alvo de censura durante a ditadura. Até hoje, ainda é criticada quando utilizada em defesa de causas sociais e políticas, ao expor injustiças sociais. A arte incomoda por seu alcance e por mobilizar multidões em torno de uma ideia ou causa.
OP - Você considera fundamental manter o debate sobre violência contra a mulher ativo e ampliá-lo para além dos espaços tradicionalmente ocupados por mulheres?
Lenice - É assustador ver, a todo momento, novos casos de vidas femininas ceifadas pela violência. Falar sobre esse tema é urgente e necessário, especialmente em espaços de grande alcance dos homens. Reunir mulheres é mais fácil, mas dialogar com o público masculino exige ir até eles e tratar o assunto com cuidado, sem generalizações.
O machismo é aprendido desde a infância, muitas das vezes no ambiente familiar. Já nascemos, muitas vezes, não sendo bem-vindas, alvo de chacotas e piadas misóginas. Enquanto o menino é impedido de expressar dor ou chorar para "não deixar de ser macho", a menina cresce sendo vista como frágil. Isso constrói uma visão distorcida tanto sobre o homem quanto sobre a mulher.
OP - Como você busca desconstruir essas questões com o seu trabalho?
Lenice - No projeto social que coordeno, abordo temas como respeito de gênero, homofobia e racismo a partir da arte, de palestras e do compartilhamento da minha própria trajetória como sobrevivente da violência doméstica, utilizando a música, a poesia e meu livro como ferramentas de conscientização.
OP - Como surgiu o Quintal Cultural Raimundo Vieira e de que forma a iniciativa funciona?
Lenice - O Quintal Cultural Raimundo Vieira surgiu em 2017, no quintal da minha casa, como um espaço de encontro para poetas, músicos e famílias da Granja Lisboa, em homenagem ao meu pai. Com parcerias, especialmente com o CCBJ, a iniciativa cresceu e passou a oferecer biblioteca comunitária e atividades culturais. Hoje, somos Ponto de Cultura pela Secult-CE e Ponto de Leitura pelo MinC, atendendo cerca de 60 crianças com aulas gratuitas e voluntárias. A iniciativa é sem fins lucrativos e se mantém por doações e editais.
OP - Como seus diferentes trabalhos na arte dialogam entre si e de que forma você consegue conciliar tantas funções?
Lenice - A arte caminha de mãos dadas em tudo o que faço. Atuou como cantora, compositora, escritora e poeta, levando essas linguagens para shows, festivais, saraus, palestras e eventos do ponto de cultura. Esses trabalhos se encontram especialmente em projetos como o recital Onde Ficou o Amor, no qual utilizo música e poesia para refletir sobre a violência contra a mulher. Faço leitura de poesias de minha autoria no tema violência contra a mulher e leio as letras de músicas como reflexão.
OP - Como você espera que seu trabalho impacte as pessoas?
Lenice - Espero que toque as pessoas de um jeito íntimo e verdadeiro. Como cantora, compositora e escritora, vejo a arte como um lugar de encontro onde alguém se sente visto, compreendido e acolhido, mesmo sem me conhecer. Como gestora do projeto social espero que meus alunos sintam essa arte e sigam sendo pessoas respeitosas e empáticas.