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O que esperar do Talibã, de volta ao poder após 20 anos no Afeganistão
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O que esperar do Talibã, de volta ao poder após 20 anos no Afeganistão

Os próximos meses no montanhoso país asíatico devem ser marcados por forte controle social, declínio econômico e piora nos índices sociais relacionados às questões de gênero, avalia especialista
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Os combatentes do Talibã montam guarda ao longo de uma estrada perto do local de uma procissão da Ashura, realizada para marcar a morte do Imam Hussein, neto do Profeta Maomé, ao longo de uma estrada em Herat em 19 de agosto de 2021, durante a tomada militar do Talibã no Afeganistão.
 (Foto: AREF KARIMI / AFP)
Foto: AREF KARIMI / AFP Os combatentes do Talibã montam guarda ao longo de uma estrada perto do local de uma procissão da Ashura, realizada para marcar a morte do Imam Hussein, neto do Profeta Maomé, ao longo de uma estrada em Herat em 19 de agosto de 2021, durante a tomada militar do Talibã no Afeganistão.

Um velho ditado afegão resume, em poucas palavras, a estratégia e o sucesso do grupo extremista Talibã na retomada do poder ao assumir o controle da cidade de Cabul, capital do Afeganistão, no último domingo, 15. “Vocês têm relógios, nós temos o tempo”.

O dito popular já foi utilizado para simbolizar diferentes contextos de guerra e invasão ao país. E agora representa a maior vitória militar do grupo fundamentalista nos últimos 20 anos.

As cenas de horror vistas nesta semana, com homens, mulheres e crianças invadindo a pista do aeroporto de Cabul e escalando aeronaves em movimento são retratos das dolorosas lembranças causadas pelo Talibã entre 1996 e 2001, período em que o grupo governou o Afeganistão a mão de ferro. A retomada do poder, no entanto, não ocorreu da noite para o dia.

O Talibã já avançava desde maio, quando os Estados Unidos iniciou um apressado e desorganizado processo de retirada de suas tropas do país asiático. A vida no Afeganistão sempre foi rodeada por crises, invasões, violência e pobreza. Entretanto, com o Talibã no poder, grupos minoritários como mulheres e homossexuais terão de se preocupar com a crise econômica enquanto temem por suas vidas e direitos.

Líderes do Talibã já deram entrevistas falando em “moderação” e prometendo respeitar os direitos das mulheres “dentro do limite do islã”. Entretanto, protestos contrários ao grupo já estão sendo reprimidos com violência extrema.

Os talibãs anunciaram ainda que devem aplicar a Sharia, lei islâmica que consiste em um conjunto de normas e diretrizes da “vida ideal” para os muçulmanos. As normas têm interpretações plurais e aplicações distintas. Elas versam sobre diversos aspectos do cotidiano, determinando orações diárias, jejum e doações.

A única referência conhecida da interpretação que o Talibã tem da Sharia é a do período em que governou o país. À época, a aplicação da lei era uma das mais violentas do mundo. Amputação de membros para ladrões, apedrejamento de mulheres adúlteras, execuções públicas de assassinos e chicotadas faziam parte do cotidiano afegão. As mulheres não tinham direitos básicos como o de estudar e trabalhar ou mesmo o de ir e vir (sem autorização).

Não está claro até que ponto o Talibã pretende respeitar direitos conquistados de 2001 para cá. Mas em menos de uma semana de domínio já há relatos de mulheres e meninas privadas de liberdades individuais.

Afegãos seguram suas bandeiras nacionais ao celebrar o 102º Dia da Independência do Afeganistão em Cabul, em 19 de agosto de 2021, dias após a conquista militar do país pelo Taleban. (Foto: WAKIL KOHSAR / AFP)
Foto: WAKIL KOHSAR / AFP Afegãos seguram suas bandeiras nacionais ao celebrar o 102º Dia da Independência do Afeganistão em Cabul, em 19 de agosto de 2021, dias após a conquista militar do país pelo Taleban.

Carlos Gustavo Poggio, PhD em Relações Internacionais e americanista, analisa que a primeira entrevista de líderes talibãs demonstrou mais pragmatismo do que moderação de fato. “São coisas bastante diferentes”, ressalta.

Poggio destaca uma diferença fundamental da sociedade afegã atual para aquela que habitava o país há 20 anos. “65% da população é composta por jovens e crianças. Isso significa que a maioria da população nasceu após a queda do Talibã (2001). Metade dos estudantes na American University of Afghanistan atualmente são mulheres. O Talibã encontrará uma sociedade bem diferente da que o país tinha naquela época. Uma questão fundamental é saber como esses grupos reagirão ao retorno do Talibã ao poder”.

Para Lucas Leite, professor de Relações Internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), os próximos meses no Afeganistão serão marcados por um “forte controle social”, pelo acentuado “declínio econômico” e pela “piora nos índices sociais relacionados às questões de gênero” e acesso a questões básicas de direitos fundamentais.

“As pessoas que lideram o Talibã hoje não são moderadas ou sem relação com o governo anterior. Pelo contrário, estamos falando de filhos, sobrinhos, tios de membros daquele grupo”.

O pesquisador aponta que, em relação a 2001, o Talibã se articulou politicamente. Segundo ele, antes o grupo atuava a partir de uma forma de “terrorismo clássico”, norteado por uma lógica de controle abusiva e cruel. “Isso mudou? Não. Essa ideia de ‘talibã moderado’ é uma grande bobagem, mas o que a gente percebe é que o grupo se fortaleceu politicamente”.

Avião da Força Aérea estadunidense decolou de Cabul com mais de 600 refugiados(Foto: Reprodução/DefenseOne)
Foto: Reprodução/DefenseOne Avião da Força Aérea estadunidense decolou de Cabul com mais de 600 refugiados

Apesar de não ser visto como um representante legítimo do país, o Talibã se articulou para mostrar que o apoio de outros países pode ser lucrativo. “Há uma lógica de intenções entre esses atores. Países como a Rússia e a China perceberam de antemão que o Talibã conquistaria novamente o território assim que os EUA o deixassem. Isso, na prática, abre uma série de possibilidades, inclusive em termos de cooperação econômica”, analisa.

Caso o Talibã consiga gerar segurança para atuação de potências estrangeiras e do seu capital no Afeganistão é muito improvável que algumas dessas potencias cobrem, efetivamente, mudanças em questões de direitos humanos. Mesmo com a previsão de agravamento da crise econômica com a saída dos americanos e de moeda estrangeira forte (dólar), o suporte de outros países poderia viabilizar eventual radicalização do grupo.

A partir desse cenário, é provável que haja o aumento de refugiados afegãos. Sobre o tema, Leite defende que a comunidade internacional comece a pensar estratégias para gerar “condições para que eles (refugiados) sejam recebidos, porque o país foi ocupado por 20 anos com o apoio internacional”.

Cidadãos afegãos chegam ao ponto de passagem da fronteira Paquistão-Afeganistão em Chaman em 19 de agosto de 2021 para retornar ao Afeganistão. (Foto: AFP)
Foto: AFP Cidadãos afegãos chegam ao ponto de passagem da fronteira Paquistão-Afeganistão em Chaman em 19 de agosto de 2021 para retornar ao Afeganistão.

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