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As décadas de silêncio que marcam os homens vítimas de violência sexual
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As décadas de silêncio que marcam os homens vítimas de violência sexual

Denis Gonçalves Ferreira é fundador da primeira organização não governamental no Brasil que acolhe com atendimento psicológico homens vítimas de violência sexual. Casos estigmatizados, que são silenciados por décadas
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Denis Gonçalves Ferreira, fundador e diretor executivo da ONG Memórias Masculinas: "[Homem] relatar ou confessar que foi vítima de violência sexual é se colocar no lugar que a sociedade não aceita que ele esteja" (Foto: DIVULGAÇÃO)
Foto: DIVULGAÇÃO Denis Gonçalves Ferreira, fundador e diretor executivo da ONG Memórias Masculinas: "[Homem] relatar ou confessar que foi vítima de violência sexual é se colocar no lugar que a sociedade não aceita que ele esteja"

 

 

A Memórias Masculinas é a única organização do terceiro setor no Brasil que dá suporte psicológico a homens vítimas de violência sexual. Foi criada em janeiro de 2021. O trabalho é voluntário, gratuito, para cuidar de um tema que é muito menos falado e tratado por causa do tabu na sociedade, e não pelo número real de ocorrências.

Os atendimentos da ONG são virtuais, o que, inclusive, ajuda a destravar os depoimentos dos pacientes durante as consultas. Nas histórias, meninos que silenciaram seus traumas por décadas e só agora, como adultos e sem a necessidade do presencial, se encorajaram para falar do assunto. A média de idade das vítimas é de 35 anos, mas surgem depoimentos de homens com 60 anos ou mais. A procura vem de todas as regiões do Brasil.

"83% dos rapazes que a gente atendeu afirmaram que a violência aconteceu na infância e foi cometida por pessoas que eles conheciam", descreve o psicólogo Denis Gonçalves Ferreira, fundador e diretor executivo da organização. E a maioria foram casos que se estenderam por muitos anos, inclusive praticados por abusadores e também por abusadoras — "figuras conhecidas das vítimas, provavelmente dentro do ambiente doméstico".

Mas, segundo Ferreira, um dado foi mais assustador: 2,1% dos rapazes assistidos afirmaram que a violência sexual aconteceu também na idade adulta. "Quando eles nos procuram, alguns dizem que estavam procurando na internet sobre violência sexual contra homens porque estavam sofrendo, revivendo, lembrando, e nos encontraram. E quando encontraram dizem que é quase como um oásis no meio do deserto", descreve.

 

 

 

O POVO - O surgimento da Memórias Masculinas tem alguma relação com a demanda da pandemia?

Denis Gonçalves Ferreira - Não tem. Eu trabalho com atendimento à violência sexual desde a minha graduação e atendendo vítimas. Aí na pandemia, logo no começo, primeiro mês, eu escrevendo minha tese de doutorado, me deparei com a lacuna de que eu no consultório particular, como psicólogo, atendo homens que foram vítimas de violência sexual, mas não havia nenhum serviço especializado para eles. A gente sabe que para pagar uma consulta particular de processo de psicoterapia, pouquíssimas pessoas têm condições por conta da desigualdade econômica do Brasil, aí me dei conta. Em março de 2020, falei "uau, não existe nenhuma organização e estou trabalhando com pesquisa, atendendo no consultório, então está errado isso". Reunimos um grupo de amigos que também trabalhavam no enfrentamento à violência sexual ou pesquisa, elaboramos um estatuto, regimento interno, nos organizamos e em setembro de 2020 fizemos a assembleia de fundação.

OP - Como se dá o trabalho? São visitas, atendimentos on-line? Vocês chamam de paciente ou vítima?

Denis - A gente chama de paciente ou homem ou sobrevivente. Por a ONG ter nascido no meio da pandemia, o Conselho Federal de Psicologia liberou os atendimentos de maneira remota. Por começarmos os atendimentos na pandemia e porque a gente sabia que não existia nenhuma outra organização, achávamos que seria desonesto começar o atendimento só aqui em São Paulo, sendo que tem homens no Brasil inteiro precisando de espaço de escuta e acolhimento. Com a possibilidade dos atendimentos virtuais, recrutamos voluntários do Brasil inteiro. Nossos atendimentos são feitos por voluntários treinados por nós. E os homens que querem falar sobre essa experiência precisam entrar no site. Eles preenchem um cadastro muito simples, que é nome, telefone, e-mail, cidade e estado que está falando, só para termos a dimensão de onde são esses homens. A partir desse cadastro no site ele é direcionado para nosso WhatsApp e lá a gente marca esse primeiro atendimento com um voluntário ou voluntária.

A gente tinha muito medo de haver uma demanda represada muito grande. Começamos com dois ou três voluntários, por isso determinamos que nosso atendimento começaria no formato de plantão psicológico. Há evidência científica que tem a mesma condição terapêutica de um atendimento a longo prazo. A gente consegue atender homens em plantão psicológico, no máximo dois atendimentos com cada homem. Os atendimentos podem ter duração de 30 minutos a três horas. Mas é aquele atendimento muito profundo. O rapaz procura a gente pra falar daquela situação que é pontual, sobre a experiência da violência sexual que sofreu. É muito terapêutico para esses rapazes. E nossos voluntários são treinados para darem conta de dar um significado, um novo sentido para a organização afetiva e psicológica desses rapazes que estão espalhados pelo Brasil todo.

Ele não vai falar porque tem medo que alguém possa identificá-lo como gay, homossexual, e ele vai ter que lidar com as consequências disso. Outra questão, além dessa da homossexualidade, os meninos são educados para serem fortes e para estarem prontos para sexo o tempo todo.

Recentemente fizemos o relatório com as informações principais de atendimentos. Em um ano e três meses (até abril de 2022), sem nenhuma grande matéria, sem nada de publicidade, divulgação exclusivamente orgânica, a gente atendeu homens do Brasil inteiro. Do Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul, com destaque para o Sudeste porque as pessoas da organização divulgam mais por aqui, mas atendemos homens de todas as regiões do País. Ficamos muito felizes com essa notícia. E fiquei muito feliz por você ter entrado em contato porque, embora tenhamos atendido gente do Nordeste, nosso maior atendimento foi no Sudeste. A possibilidade de ter vocês falando do nosso trabalho talvez os rapazes do Nordeste consigam saber da nossa existência.

OP - Quais os números do atendimento?

Denis - Foram 101 homens que nos procuraram nesse intervalo. E esse relatório terminamos em janeiro. Um ano de atendimento, 101 homens nos procuraram. Na média, a cada quatro dias, um homem. Fiquei muito impressionado. Porque sabia que tinha sido bastante, mas não esperava que tinha sido perto da casa dos 100. 

OP - Você pode descrever qual o perfil desse paciente, dessas histórias? O que eles contam?

Denis - A média da idade dos homens que nos procuraram é de 35 anos. Atendemos homens de 20, de 60, mas na média dá 35 anos. É uma média interessante de homens jovens adultos. Durante os atendimentos, os homens relataram majoritariamente experiências de violência sexual na infância. Oitenta e três por cento dos rapazes que a gente atendeu afirmaram que a violência aconteceu na infância e foi cometida por pessoas que eles conheciam. Com 66% dos nossos atendidos, os agressores eram conhecidos e 47% foi por familiares, que inclui pai, irmão, tio, avô. Majoritariamente as violências foram cometidas por figuras conhecidas das vítimas, provavelmente aconteceram dentro do ambiente doméstico. Tem pesquisas dos sistemas de notificação de que 80% dos casos de violência sexual acontecem na casa da vítima ou do agressor. Com os homens que atendemos não foi diferente.

Mas tem um dado interessante, que estou discutindo no doutorado. Na hora de o voluntário preencher o formulário, numa pergunta de múltipla resposta que pode ser infância, adolescência ou idade adulta, 83% foram na infância, 34% na adolescência, e o dado que assusta todo mundo, 2,1% dos rapazes que a gente atendeu afirmaram que a violência sexual aconteceu também na idade adulta. Esse dado é superinteressante. No meu doutorado analiso dados de uma pesquisa do Ministério da Saúde, de 2016, em 12 capitais brasileiras, com homens que fazem sexo com homens. Estou analisando o perfil de revitimização da violência sexual contra esses homens. Na minha pesquisa de doutorado a gente também perguntou infância, adolescência e idade adulta, e categorizei infância-adolescência e idade adulta em separado. Homens que fazem sexo com homensCategoria mais ampla, que independe da orientação sexual dos homens em questão. Inclui, mas não se restringe a pessoas que se consideram homossexuais. O conceito funciona para facilitar a identificação também de homens que se consideram heterossexuais, mas transam (também) com outros homens de 12 capitais brasileiras, que foram vítimas de violência sexual na infância e na adolescência têm até quatro vezes mais chance de também sofrerem na idade adulta. Imagina que a gente não fala sobre o assunto e estou citando que homens adultos, que acreditamos terem capacidade de se defender, também são vítimas. E na pesquisa analisada do doutorado, em que participaram 4 mil homens das 12 capitais, o percentual de homens vítimas da violência na idade adulta também é de 2%. A mesma percentagem dos homens que nós atendemos na Memórias Masculinas.

OP - O que você está falando bate com o dado do Ceará. São 43 casos registrados em 2022, de janeiro a março, com vítimas de 1 a 58 anos de idade. De 1 a 17 anos são 32 casos e dos 19 a 58 anos são os demais, com dois de idade não informada. Bate com sua pesquisa e com os atendimentos da ONG.

Denis - É interessante você falar isso porque é uma informação que a gente encontrou na ONG, de procura voluntária desses homens, que também apareceu na pesquisa do doutorado e nos dados aí do Ceará.

 

Um pesquisador do Rio Grande do Sul, Jean Von Hohendorff, tem um artigo muito interessante sobre violência sexual. Ele diz que a gente não pode afirmar que os homens são menos vítimas que as mulheres porque a quantidade de subnotificação entre os homens é absolutamente estratosférica.

OP - Dado oficial da Secretaria da Segurança Pública.

Denis - Interessante olhar para esse fenômeno porque a gente não imagina que um homem pode ser vítima de violência sexual na idade adulta. Coordenei uma pesquisa na Univag, no Mato Grosso, com estudantes de Medicina. Entrevistamos 800 e poucos estudantes, homens e mulheres, e os questionamos sobre as experiências de violação sexual, como passada de mão, beijo forçado, masturbação por cima ou por baixo da roupa. Estamos falando de violação sexual sem atos penetrativos. Quarenta e poucos por cento desses jovens, classe média alta, que estão na faculdade de medicina, homens, relataram que tinham passado por uma experiência dessas. É um dado assustador. Interessante falar sobre isso porque a gente que trabalha com esse fenômeno acredita que os números estão extremamente subnotificados. Um pesquisador do Rio Grande do Sul, Jean Von Hohendorff, tem um artigo muito interessante sobre violência sexual. Ele diz que a gente não pode afirmar que os homens são menos vítimas que as mulheres porque a quantidade de subnotificação entre os homens é absolutamente estratosférica. A gente nem consegue imaginar por conta da cultura machista, porque o homem não se coloca no papel de vítima, uma série de outras questões. Os dados que estamos encontrando em pesquisas já são muito maiores do que os sistemas de notificação e provavelmente nem representam toda a realidade.

OP - Queria tocar nesse ponto da questão cultural, do machismo, em que a vítima se omite, se esconde, se constrange, e queria que você cruzasse essa informação com a falha dos dados públicos sobre violência. Sejam secretarias de segurança, promotorias, defensorias. O silêncio pelo machismo e o silêncio da estatística oficial.

Denis - Nessa cultura patriarcal, machista, o homem é educado para ser forte, para saber se defender. Menino vítima de violência quase não está ocupando o lugar que ele deveria ocupar, de saber se defender. Relatar ou confessar que ele foi vítima de violência sexual é se colocar no lugar que a sociedade não aceita que ele esteja porque ele é forte, capaz de se defender, não pode demonstrar emoções. Esse é um primeiro traço importante na subnotificação. Uma segunda coisa é que o menino vítima de violência majoritariamente por um rapaz ou por um homem adulto está tendo naquela situação de violência sexual uma experiência homossexual, mesmo que ele não seja homossexual. E a homossexualidade tem um estigma absurdo na sociedade. Ele não vai falar porque tem medo que alguém possa identificá-lo como gay, homossexual, e ele vai ter que lidar com as consequências disso. Outra questão, além dessa da homossexualidade, os meninos são educados para serem fortes e para estarem prontos para sexo o tempo todo. Quando é uma agressora, ele não conta para os colegas como se fosse uma experiência de violência. Vou usar as expressões que os nossos pacientes falam: "Ah, eu c***** minha tia quando eu tinha 12 anos de idade". Mas quantos anos ela tinha? "Tinha 30". Ele não conta como se fosse uma experiência de que ela é uma mulher adulta que estava violando a sexualidade dele. Ele não consegue nem se colocar no lugar de vítima.

Os dados da saúde são muito mais baixos que os da segurança pública. Porque para chegar no serviço de saúde precisaria ser por atos penetrativos. Nos boletins de ocorrência é mais fácil que ele chegue lá, mas não é fácil chegar lá. Nós, homens adultos, chegarmos numa delegacia e dizermos "passaram a mão em mim", "tentaram me beijar forçado", "colocaram a mão dentro da minha calça", pode ser que deem risada de mim. "Ué, e por que você não tirou pra fora e aproveitou a situação?". Imagina o cenário de um homem ir à delegacia e falar sobre isso. Existe uma barreira absurda nesse sentido.

Além disso, o crime de estupro, até 2009, só era possível de acontecer com as mulheres. Porque a lei especificava a mulher sofrendo tal situação. Em 2009, tornou mais abrangente, fala de alguém sofrendo, que pode ser homem ou mulher. Quando você vai ver os dados de notificação do Ministério da Saúde, em 2019 tinha um número de estupros, que vai aumentando, aumentando, e esse número hoje é inferior em relação às mulheres, mas é muito maior. Teve aumento, acho que de 400%, da notificação de estupro (masculino) de 2009 a 2018. Porque esse crime não era nem identificado que um homem poderia sofrê-lo. Somado a isso, as pessoas que trabalham com notificação não estão treinadas para acolher esses homens. Então pode ser que ele até chegue em algum serviço, não consiga falar sobre, desista e vá embora. E nossos serviços todos, tanto de saúde quanto de segurança, estão atolados de trabalho. Aí há um problema do registro de sexo da vítima. Porque quando notificam e não registram sexo da vítima, cor de pele, essas coisas todas, a gente fica a dever essas informações e não consegue nem fazer o perfil epidemiológico. Tentando resumir: além dos problemas da cultura machista e patriarcal, temos a questão dos sistemas lotados, não foram treinados para receber homens vítimas da violência sexual e por isso podem deixar a desejar no preenchimento das notificações.

OP - Você falou sobre uma série de desinformações dos órgãos públicos. Várias descrições dos dados aparecem como "não informadas". Em raça, escolaridade. Pode estar lá uma vítima travesti ainda com seu nome anterior, talvez como vítima masculina.

Denis - Imagine você acrescentar nos dados dos homens as travestis e as mulheres trans. Embora a gente esteja falando de violência sexual, são violências completamente diferentes. No caso das travestis e mulheres trans, passa uma questão de gênero objetivamente. São pessoas do gênero feminino. É exatamente a mesma violência que as mulheres sofrem. Quando estamos falando de homem, é outro perfil de agressor e talvez outro perfil de violência. A Secretaria da Segurança Pública não conseguir informar isso com muita clareza é um problema absurdo nos dados. Na pesquisa do doutorado que estou fazendo, com dados de 12 capitais brasileiras, a gente não aceitou a participação de travestis e mulheres trans. Na pesquisa de 2010, quando analisamos os dados de violência, estavam incluídas as travestis e mulheres trans. Porque naquele momento era um inquérito sorológico de HIV, sífilis e hepatite B e C, de homens que fazem sexo com homens. E naquele momento incluíram as travestis e transexuais. Na pesquisa de 2016, a gente não incluiu porque entendeu que nesse processo não dá para incluir porque no universo de homens que fazem sexo com homens é um público completamente diferente.

OP - Pontuei aqui no Ceará uma vítima de 58 anos. Vocês encontraram faixa etária maior nos atendimentos?

Denis - Sim. Na pesquisa não tenho certeza da idade. Na ONG, lá no começo — hoje não participo mais de atendimentos, é todo realizado por voluntários —, eu tive a experiência de atender, em janeiro de 2021, quatro pessoas e as quatro acima de 60 anos. Que tinham sofrido violência lá na infância. E passaram esses anos todos em silêncio. Os casos aconteceram quando tinham dez anos de idade. E até os 60 anos não tinham contado para absolutamente ninguém.

A gente consegue imaginar o estigma, ele teve medo a vida toda de falar disso porque os agressores foram homens. Medo de ser identificado como homem gay. Isso para ele é intolerável.

 

OP - E o perfil social?

Denis - Homens casados, heterossexuais. Estou fazendo outro estudo com os alunos. Perguntamos na pesquisa, que está no site do Memórias Masculinas, sobre a orientação sexual desses homens. Participaram quase 2 mil homens do Brasil inteiro. Analisamos a violência a partir da orientação sexual. Homens bissexuais têm mais chance de sofrer violência sexual do que homos e heterossexuais. E homens homossexuais também têm mais chance de sofrer violência sexual do que os heterossexuais. Entre as orientações sexuais, os héteros são os que têm menos chance de sofrer. Mas na Memórias Masculinas os nossos atendimentos são majoritariamente com homens heterossexuais de meia idade, casados heterossexualmente. A gente consegue imaginar o estigma, ele teve medo a vida toda de falar disso porque os agressores foram homens. Medo de ser identificado como homem gay. Isso para ele é intolerável. Imagina ele ter que lidar com a experiência do trauma e agora o estigma que é gay, mesmo que nunca tenha sentido atração por nenhum homem. 

OP - O que eles dizem de estar buscando atendimento naquele momento, após o silêncio de vários anos ou décadas?

Denis - A gente não tem essa média do tempo que eles demoraram, mas a instituição Quebrar o Silêncio, lá de Portugal, fez essa conta do tempo que o homem demora para falar. De acordo com os homens que eles atenderam, as vítimas demoraram 25 anos para falar dessa experiência. Aqui a gente atendeu homens com mais tempo do que isso, mas outros nessa mesma faixa. Quando eles nos procuram, alguns dizem que estavam procurando na internet sobre violência sexual contra homens porque estavam sofrendo, revivendo, lembrando, e encontraram a Memórias Masculinas. Todos que eu atendi e supervisionei com os voluntários, a experiência foi exatamente essa. Estavam navegando pela internet atrás de alguma informação sobre o que tinha acontecido com eles. Uma outra quantidade que atendemos estava no Instagram, viu alguém que compartilhou alguma coisa e chegou no nosso perfil. Hoje nosso Instagram não tem nem 2 mil seguidores [à época da entrevista, realizada em abril, número já ultrapassado], é pequeno, mas pessoas compartilham e chegaram nesses rapazes. A gente sempre pede que compartilhem para chegar num homem que de fato precisa. Mas o relato deles é que estavam procurando informações na internet sobre violência sexual contra homens e chegaram na gente. E quando encontraram dizem que é quase como um oásis no meio do deserto.

OP - Os dados que o Estado faz a tabulação são acumulados para que fim? Há alguma política pública sendo conduzida sobre esses casos no País?

Denis - É interessante o que você diz porque mesmo que a informação seja tabulada da maneira errada, subnotificada ou que os homens não procuram como deveriam, mesmo assim os números já são altos. Mesmo que os dados sejam muito pobres, são assustadores. E não há no Brasil nenhuma política de atendimento para homens vítimas de violência. No Brasil, a partir do Sistema Único de Assistência Social (Suas), onde tá tipificado o Creas (Centro de Referência Especializado da Assistência Social), que atende toda violação de direitos humanos. Contra crianças e adolescentes, mulheres, idosos, pessoas com deficiência, comunidade LGBT, e não entram homens nesse atendimento. Eu já fui psicólogo de Creas. Fiquei tentando imaginar o cenário de um homem chegando no Creas. "Preciso de atendimento psicológico porque fui vítima de violência sexual". Imagino que iria olhar para minha dupla, assistente social... "O que ele tá fazendo aqui? Por que esse homem veio aqui?". Pode fazer uma pesquisa nacional, um Creas não atende um homem vítima de violência sexual. A mulher, que a partir das estatísticas é muito mais vítima, quase não chega no Creas. Porque não sabe da existência dele, não sabe o trabalho que ele executa. Imagina um homem, que nem se vê no lugar de vítima, procurando um serviço desses.

Esses dados existem na Secretaria da Segurança Pública, a partir dos boletins de ocorrência. Os dados existem a partir do sistema de notificação do Ministério da Saúde. E recentemente a gente teve realizada, em 2019, a Pesquisa Nacional de Saúde. Na PNS de 2013 não foi questionada a experiência de violência. Agora de 2019 questionaram essa experiência. E a partir dos dados da PNS, que é uma pesquisa de fato representativa no Brasil, estimou-se que quase 3 milhões de homens, acima de 18 anos, tiveram uma experiência de agressão sexual em algum momento da vida. A gente está falando de homens adultos, não está falando de meninos abaixo de 18 anos. Imagino que a gente pode fazer (multiplicar) por dois, no mínimo 6 milhões, de meninos e homens vítimas de violência.

OP - Equivale à população de Fortaleza, 3 milhões de habitantes.

Denis - Até comparei isso: 3 milhões é maior que a maioria das capitais brasileiras. Imagina Fortaleza, o tamanho que é. Estamos falando de 3 milhões de homens sem nenhuma política pública. Em tese, ele poderia procurar um Creas para o suporte psicológico e jurídico, mas ele não sabe disso. Ele poderia procurar um CAPS, que é o Centro de Apoio Psicossocial, porque tem psicólogo lá para atendê-lo, mas ele também não sabe que pode. E se ele procurar, um CAPS atende transtornos mentais. Esquizofrenia, depressão, transtorno de ansiedade. Se ele chegar num CAPS, falar com uma psicóloga, disser que é vítima de violência sexual, tem uma fila de 50 pessoas, em seis meses entra em contato. Porque os CAPS estão lotados, gente precisando de atendimento urgente.

OP - Sua pesquisa de doutorado tem um formulário que pode ser preenchido na internet. O que você tem colhido de informação?

Denis - Faço várias pesquisas. Tem a que fiz com os estudantes universitários, essa já terminamos e está perto de publicação. Tem a pesquisa do site, que estamos escrevendo os últimos resultados de análise para publicação. E tem a pesquisa do doutorado, sobre homens que fazem sexo com homens. Na pesquisa do site, a gente analisou minuciosamente todas as experiências de violência sexual. A gente analisa "alguma vez na vida alguém passou a mão em você?", "alguma vez na vida alguém te masturbou por cima da roupa?", "alguma vez na vida alguém forçou um beijo em você?", "alguma vez na vida alguém te masturbou por baixo da roupa?", "alguma vez na vida alguém te expôs à pornografia?". Todas situações que são violentas. Quando vamos analisando separadamente, tem respostas que beiram os 70%. E a última pergunta sobre violência é "alguém fez sexo forçado com você?". Estamos falando de uma experiência muito mais invasiva. Trinta por cento dos rapazes que participaram da pesquisa afirmaram que sim. Nossa amostra é de quase 2 mil pessoas. Se fosse representativa do Brasil, 30% é uma coisa gigantesca. E no doutorado usamos essa mesma pergunta no questionário do Ministério da Saúde, só que não fizemos o rastreio dessas coisas minuciosas. A gente só perguntou "alguma vez na vida você foi forçado a fazer sexo com alguém?". E 21% desses 4 mil homens afirmaram que sim, 12% foram na infância, 9% na adolescência e 2% na idade adulta. Estamos falando de uma experiência sexual forçada. Não necessariamente uma passada de mão, uma masturbação, uma exposição à pornografia.

OP - Agressor ou agressora?

Denis - Majoritariamente homens, mas tem agressoras também. No estudo, dados do Distrito Federal, analisaram as notificações exclusivamente em meninos. Dez por cento das notificações eram agressoras sexuais. Estamos falando de 90% dos meninos agredidos por outros homens e 10% por mulheres. Não dá para imaginar que o menino está ileso de sofrer violência sexual também por mulheres. Importante dizer isso para tirar essa aura imaculada de que a mãe, a tia, são inofensivas, e elas também podem ser agressoras sexuais.

 

"Tem um caráter importante na violência contra os meninos é que ela só vai aparecer porque a gravidade da violência é muito grande e o menino vai precisar de um serviço de saúde. " Denis Gonçalves Ferreira, psicólogo

 

OP - Tem algum ponto que você queira destacar do trabalho da ONG e das suas pesquisas?

Denis - Queria destacar o caráter de repetição da violência. Na pesquisa de doutorado estamos vendo que um homem que foi vítima da violência sexual na infância e na adolescência tem até quatro vezes mais chances de sofrer também na idade adulta do que quem não sofreu nas idades mais novas. O fato de você ser vítima uma ou duas vezes em fases diferentes da vida aumenta profundamente a possibilidade de você ser vítima também na idade adulta. Os homens que atendemos na Memórias Masculinas, perguntamos quantas vezes a violência tinha acontecido: uma vez, mais de uma vez ou por meses ou anos. E caímos quando vimos esses dados: 51% dos homens que atendemos falaram que a violência contra eles aconteceu por meses ou anos. E 36% afirmaram que aconteceu mais de uma vez, duas, três, quatro, cinco vezes. Se você somar esses 51% mais 36% (87%), estamos falando de maioria esmagadora dos meninos foram vítimas de violência sexual sistematicamente ao longo do tempo. E tem um estudo que vai dizer que os meninos costumam sofrer violências mais graves e mais duradouras porque o agressor sabe que ele não vai notificar. Tem um caráter importante na violência contra os meninos é que ela só vai aparecer porque a gravidade da violência é muito grande e o menino vai precisar de um serviço de saúde. O agressor executa a violência por anos seguidos porque ele sabe que o menino não vai falar. Ele ameaça o menino, "se você contar para alguém, eu te mato", "se você contar para alguém, eu conto para todo mundo que você é gay, que você gostou". O menino fica absolutamente coagido a não falar. O agressor, sabendo que ele não vai falar, se sente autorizado a cometer atos mais duradouros.

Então quero destacar o caráter de repetição dessa violência. Outro ponto interessante: a maioria desses homens que procuraram a ONG, 79% deles, já tinham falado sobre a experiência de violência sexual. Para alguém, um amigo, colega, psicoterapeuta. Mas a gente atendeu, e esse dado não vou saber precisar, quantidade importante de homens que faziam psicoterapia, mesmo assim procuraram a Memórias Masculinas porque não conseguiam falar com seus psicólogos sobre essa situação. Encontrar a Memórias Masculinas, que é um serviço especializado, deu coragem para eles. Gente que fazia terapia há três anos não conseguia abrir a história na sessão, e após um ou dois atendimentos com a gente fala sobre isso. O que mostra que os homens estão bastante desamparados.

OP - O atendimento de vocês é gratuito?

Denis - Sim, gratuito.

OP - Vocês cruzaram o trabalho de vocês com a responsabilização criminal dos casos? 

Denis - Não. Uma pessoa pode denunciar a violência que ela sofreu 18 anos depois de ela ter completado 18 anos. Imagine que a violência aconteceu quando ela tinha 10 anos de idade. O que vai acontecer é que provavelmente o agressor não vai ser punido porque não tem prova, não tem testemunha, nada. Mas a vítima tem o direito de fazer isso. E um dos rapazes que a gente atendeu, do Rio de Janeiro, nunca tinha conseguido falar para absolutamente ninguém. Veio para atendimento, foi atendido uma vez, duas vezes, passou três meses e ele pediu novo atendimento. Nesse terceiro atendimento ele disse "quero denunciar". O agressor é tio dele. "Já procurei o advogado, que perguntou se vocês podiam fazer um relatório que passei por atendimento com vocês. Porque eu vou entrar na Justiça. Eu sei que pode ser que não dê nada, mas pra mim é importante fazer isso porque preciso que ele se sinta responsabilizado pelas coisas que ele fez comigo". Esse foi o único rapaz. Mas quando procuram a gente para orientação jurídica, tem um advogado na equipe, mas ele não faz o atendimento com os pacientes. Os psicólogos é que passam a orientação que o advogado dá sobre fazer boletins de ocorrência e questões mais criminais. Mas só esse rapaz até hoje teve essa disposição de fazer isso.


 

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