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Crimes sexuais: eles também são vítimas
Reportagem Especial

Crimes sexuais: eles também são vítimas

Dados da SSPDS, apontam que, nos primeiros três meses de 2022, violência sexual contra homens foi oito vezes menor que casos com mulheres, mas subnotificação é um dos principais elementos desse cenário. Abusos acontecem com crianças, adolescentes e também em relações não consentidas com adultos. A vítima violentada na infância pode silenciar por décadas

Crimes sexuais: eles também são vítimas

Dados da SSPDS, apontam que, nos primeiros três meses de 2022, violência sexual contra homens foi oito vezes menor que casos com mulheres, mas subnotificação é um dos principais elementos desse cenário. Abusos acontecem com crianças, adolescentes e também em relações não consentidas com adultos. A vítima violentada na infância pode silenciar por décadas
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O menino imagina que seja uma brincadeira do “tio” — em geral, alguém muito próximo, familiar ou conhecido. Mas é surpreendido. A mão nada despretensiosa desliza por cima do calção do garoto, que não entende ou se assusta, mas se contém na reação. O contato talvez passe para dentro da roupa do menino. O ambiente poderá ser o doméstico, o escolar, até o religioso. Os casos anotados se apresentaram assim. Mas na rua ou lugares não específicos também acontecem, praticados por desconhecidos. As situações violadoras poderão se agravar até o ato penetrativo. O abuso poderá se estender por muitas vezes, por meses, por anos. Poderá transpor toda a infância, a adolescência.

Essa vítima, já um adulto, poderá manter o segredo por muito tempo. Talvez nunca fale para ninguém e só desabafe depois de décadas. Entre as causas do silêncio, os relatos apontam o receio de ser estigmatizado, puxado pelo machismo/homofobia no ambiente social, ou prévio medo do abusador, o que os outros falarão se a história for revelada? As situações incluem abusadoras. Também há vítimas que, mesmo adultas, são sujeitas à relação não consentida. O silenciamento é tanto que a lei penal brasileira, até 2009, nem considerava o crime de estupro quando o homem, em qualquer idade, era a vítima. Hoje está na Lei 12.015/09, no capítulo que trata dos crimes contra a dignidade sexual.

Na média, a cada dois dias um homem sofreu violência sexual no Ceará nos primeiros 90 dias deste ano. Foram 43 registros para o gênero masculino como vítima, entre janeiro e março. Os crimes sexuais considerados são abusos, estupros de vulneráveis e exploração sexual de menor. Mas a subnotificação é uma certeza nesse cenário. As vítimas são principalmente da faixa etária infantil e adolescente, entre 1 e 17 anos (74,41%). Mas em pelo menos dez casos anotados pelo Estado a vítima tinha entre 19 e 58 anos de idade. Chamam atenção três ocorrências que vitimaram homens de 36, 46 e 58 anos. Outros três casos não tiveram idade informada para quem sofreu o abuso.

São dados oficiais da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS), acontecidos em todo o Estado — menos em três das 25 áreas integradas de segurança. A violência sexual em que a vítima é do gênero masculino é muito menos falada, comentada, assistida e anotada, do que quando acontece com uma mulher. Os números apontam uma diferença quase oito vezes maior nos crimes sexuais, comparando as ocorrências com homens e mulheres. No primeiro trimestre de 2022, das 386 vítimas de crimes sexuais registradas, 43 foram homens e 340 mulheres — três casos não tiveram o gênero identificado.

“Um pesquisador do Rio Grande do Sul, Jean Von Hohendorff, diz que a gente não pode afirmar que os homens são menos vítimas que as mulheres porque a quantidade de subnotificação entre os homens é estratosférica. A gente nem consegue imaginar por conta da cultura machista, porque o homem não se coloca no papel de vítima, uma série de questões. Os dados que estamos encontrando em pesquisas já são muito maiores do que os sistemas de notificação e provavelmente nem representam toda a realidade”, expõe Denis Gonçalves Ferreira, fundador e diretor executivo da organização não governamental Memórias Masculinas.

Essa é a primeira e ainda a única organização do terceiro setor no Brasil a oferecer suporte psicológico para homens que foram vítimas de violência sexual. Fundada em setembro de 2020, começou a atender em janeiro de 2021. “Imagina que a gente não fala sobre o assunto e estamos citando que homens adultos, que acreditamos terem capacidade de se defender, também são vítimas”, estende Ferreira, que também trabalha em pesquisa de doutorado na área e é professor do Centro Universitário de Várzea Grande (Univag), no Mato Grosso. Há instituições similares em Portugal (Quebrar O Silêncio) e no Reino Unido (Male Survivor), fundadas anteriormente. No primeiro ano de atendimento, a Memórias Masculinas recebeu 101 pacientes, todos com consultas virtuais, procedentes de todas as regiões do País. Dois dos atendidos, segundo ele, foram homens de Fortaleza.

 

Para acessar os dados detalhados de 2022, acesse o link https://www.sspds.ce.gov.br/estatisticas-2-3/

O POVO tentou comparar os casos de violência sexual contra homens dentro do recorte temporal da pandemia, mas não obteve os dados específicos acontecidos em 2020 e 2021. O detalhamento no site da SSPDS só estava aberto sobre os de 2022. Foi enviado um email para a pasta no último dia 13 de abril com o pedido e mais informações. O mesmo email foi encaminhado para Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp) e para Polícia Civil (PCCE) — que foi designada internamente na pasta para enviar a resposta. Porém, as informações não haviam sido repassadas até a edição desta reportagem.

Entre as questões não esclarecidas: se há algum tratamento específico para esses casos, se os registros com mulheres trans e travestis aparecem entre casos masculinos ou se houve morte de alguma vítima (neste ponto, a SSPDS chegou a informar antecipadamente que precisaria acessar cada inquérito para dirimir as dúvidas). Nos dados de 2022, a maioria dos crimes sexuais contra homens foi no turno da manhã, às 8 horas, com meninos de 4 anos de idade, maioria aos sábados. Registros de raça e escolaridade trazem várias lacunas com desinformações sobre os registros.

Se você é um homem que foi vítima de violência sexual, a Memórias Masculinas oferece atendimento psicológico gratuito. Para conseguir o atendimento basta acessar o site: www.memoriasmasculinas.org/site/quero-ajuda

 


 

 

 

"Não escutamos falar, mas sabemos que acontecem"

"A gente sabe que os abusos acontecem. Inclusive sabe que muitas vezes eles são velados. Não escutamos falar sobre esses casos, mas sabemos que eles acontecem. Porém eles não chegam até nós", confirma Andreya Arruda Amendola, psicóloga jurídica da Defensoria Pública Geral do Estado. "Atendemos muita mulher vítima de violência sexual, mas do sexo masculino não nos chega como deveria".

Além do baixo registro como ocorrência policial, a notificação de atendimentos também é pequena nos atendimentos públicos psicológicos. Na Capital, a Fundação da Criança e da Família Cidadã (Funci), em nota enviada ao O POVO, reconhece que "a maioria dos casos de exploração, violência ou abuso sexual, ocorre dentro da casa da vítima e apenas 10% dos casos são notificados às autoridades".

Até ontem, 25 de abril, a Funci ainda não tinha nenhum caso registrado com vítima masculina de crime sexual em 2022. Os dados mais recentes repassados são de 2021. Segundo o órgão municipal, foram 75 casos de abuso, com as vítimas entre 0 e 18 anos de idade (mais um de idade não informada), e apenas um de exploração sexual, com idade não informada.

 

A Funci informa que desde 2006 existe o Programa Rede Aquarela, política pública especializada para o enfrentamento da violência sexual infantojuvenil. No fim de 2020, o Programa foi instituído pela lei municipal 11071/20 como política pública permanente. A nota do órgão destaca que, no Rede Aquarela, "o atendimento é o mesmo para meninas e meninos". A administração municipal não deu informações sobre como é feito o atendimento para homens adultos vítimas de violência sexual.

Para Andreya Arruda, da Defensoria Pública do Estado, o silêncio da vítima ou dos responsáveis por ela, quando os casos acontecem com crianças, só privilegia e protege o abusador. "Esses casos não são falados. O abuso é muito silenciado. As pessoas têm muito receio, muita vergonha de falar. E nisso você acaba protegendo o violador. No silenciamento você silencia sua dor, mas também protege quem violentou".

A psicóloga confirma que o machismo é o principal bloqueio a essa exposição dos casos. Em números e em histórias. Principalmente quando a vítima é um homem adulto, em tese com a capacidade de reagir. "Vivemos ainda a sociedade patriarcal. Como assim um homem foi violentado? Como assim teve uma relação não consentida? E é importante dizer que as mulheres também abusam. Esse é outro mito", amplia.

 

 

Meninos que viraram vítimas: relatos de quem vivenciou a violência

Medo, vergonha, homofobia, ausência de conversa franca sobre sexo são alguns dos fatores que impedem vítimas do sexo masculino a contar sobre os abusos que sofreram.

“O abusador se vale do silêncio”. Foi a partir dessa máxima que uma mulher de 39 anos decidiu denunciar à Polícia o abuso sexual sofrido pelo filho de 11 e ainda expor o caso em relato nas redes sociais. Ela — que será identificada nesta matéria com o nome fictício de Sandra, opção de O POVO para preservar a imagem da criança — publicou, em 17 de março último em sua conta no Instagram um relato que jogou luz ao episódio.

“Há seis meses, desde quando ele me contou, entre soluços, após voltar de um final de semana com a família paterna, que o seu tio [...] o violentou por diversas vezes, nossas vidas transformaram-se no pior dos pesadelos; um quadro surreal sangrento e perturbador”.

Após a grande repercussão do caso, Sandra relata que, para além da revolta com o crime, se formou uma rede de solidariedade em torno da vítima. Ainda se sucedeu um debate sobre abuso sexual, levando até mesmo a que famílias a procurassem para relatar casos semelhantes.

As narrativas são importantes, ela conta, porque há uma tendência de tentar ocultar os crimes — o que também ocorreu em seu caso, em que, segundo ela, parte da família paterna defendia não denunciar o caso. Sandra reforça que, em se tratando de um menino como vítima, outros elementos vêm a se somar para que o caso seja acobertado.

“Está inserido nessa cultura machista de que 'o homem aguenta', que as dores têm de serem silenciadas mesmo. São muitos absurdos que a gente escutou no relato de outras vítimas, meninos também”, ela diz. “A gente percebe que acaba virando até motivo de brincadeira, uma coisa menor”.

Essa é uma situação que Will conhece bem. Hoje com 38 anos, ele foi vítima de violência sexual aos 8. Um amigo de sua família perpetrou as agressões pelo período de um ano, mas as marcas emocionais acompanharam-no até a idade adulta. “São coisas que, volta e meia, vêm, aparentemente do nada”, como diz Will — o apelido é verdadeiro, mas O POVO não informa mais dados sobre eles para impedir a sua identificação.

Maioria dos casos de abuso sexual tem crianças e adolescentes como vítimas(Foto:  iStock/Reprodução )
Foto: iStock/Reprodução Maioria dos casos de abuso sexual tem crianças e adolescentes como vítimas

O abusador não foi denunciado à época, e, mesmo para os pais, Will não contou o que ocorreu. Ele cita o “tabu do sexo” e a homofobia como alguns dos elementos que o fizeram não contar sobre o abuso. “Eu fui abusado por um homem e eu não falei para ninguém por medo desse estigma de ser gay. Anos depois, já nos anos 2000, eu me sentia fraco, menos homem… Eu nunca tinha falado para ninguém. Resolvi falar para minha mãe quando eu já tinha 28 anos, 20 anos depois que tinha acontecido”, relata.

Will conta que não dispunha de um ambiente que o tornasse confortável para conversar a respeito. “O sexo era um assunto não-oficial, não-convencional, um assunto para se falar em burburinho, rodinha de amigos, não com pai, com mãe, não falar como assunto sério. Sexo era pra falar sobre curtição, o que não foi, foi ruim. Então, acho que isso foi uma das coisas que me bloqueou, me tornou uma pessoa mais tímida”.

"Mesmo sendo menino, criança é vulnerável. Eles precisam da proteção dos pais. E é responsabilidade dos pais darem essa proteção. Essa proteção inclui inclusive conversa e que criança e o jovem tenha voz, que ele saiba que pode falar que vai ter acolhida. Eu via na minha família, por exemplo, que as meninas tinham um cuidado na hora de chegar em casa, cuidado para sair da rua. Menino não tinha. Na cabeça (deles), o menino é autossuficiente e não é. É uma criança, um adolescente, uma pessoa em formação”." Will, sobrevivente de abuso sexual na infância

Para Sandra, o desconhecimento da lei também reforça o silêncio. Até 2009, o Código Penal previa que o estupro se caracterizava apenas como “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”. Assim, as violências sexuais contra homens eram caracterizadas como “atentado violento ao pudor”. “Percebi muito isso”, conta ela. “Chegaram até nós situações que eram estupro, mas que as pessoas sequer tinham percebido que era estupro, justamente, por acreditarem que o homem não pode sofrer estupro”.

Will também destaca outro ponto que muitas pessoas não sabem: o prazo para prescrição de crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes só passa a contar a partir da vítima completar 18 anos, ou seja, ela tem até os 38 anos para denunciar. No seu caso, porém, Will descobriu que o abusado já havia morrido.

Sem a Justiça, Will decidiu procurar a terapia para lidar melhor com o assunto. Além disso, passou a pesquisar na internet sobre espaços que reunissem pessoas que passaram pelo que ele passou. Foi assim que descobriu o Memórias Masculinas. Além dos materiais fornecidos pela ONG e o suporte psicológico, Will diz que o que mais fez a diferença para ele foram os relatos compartilhados pelos demais sobreviventes. “A sensação é não estar só no mundo”.

Já Sandra conta que o filho vem se recuperando aos poucos, com apoio de ajuda psicológica e psiquiátrica. Na esfera judicial, o Ministério Público Estadual ofertou denúncia contra o homem, que virou réu pelo crime de estupro de vulnerável. A primeira audiência do caso está marcada para o próximo dia 10 de maio.

"Para quem sofreu a situação de violência, uma coisa que demorei a entender é que não é culpa de quem sofreu. Por mais que se pense que aconteceu alguma coisa que leve a crer que você possa ter feito algo, não é culpa de quem sofreu a violência. O culpado é quem provocou a violência. E, independente de quem é a culpa, a gente consegue ficar bem. [...] Falar ajuda. Tira um peso que você nem sabia que estava ali. [...] Se a gente pedir ajudar, a gente consegue viver melhor" Will, sobrevivente de abuso sexual na infância

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