O ex-ministro da Saúde, Nelson Teich, em depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19, no Senado Federal, disse que deixou a pasta após 29 dias ao longo dos quais percebeu que não teria autonomia para gerir a crise sanitária. Exemplo mais claro disso, segundo relatou, foi a divergência com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sobre a ampliação do uso da cloroquina.
"As razões são públicas, se devem à constatação de que eu não teria autonomia, eram divergências com governo sobre eficácia da cloroquina", disse o médico oncologista nessa quarta-feira, 5, antes mesmo do início da oitiva de aproximadamente seis horas à qual foi submetido.
"Minha convicção pessoal era baseada em estudos. Existia entendimento diferente por parte do presidente, amparado até na opinião e outros profissionais, até do Conselho Federal de Medicina, que naquele momento autorizou a extensão do uso, e isso foi o que motivou a minha saída. Sem a liberdade de conduzir o Ministério optei por deixar o cargo."
Menos afeito a aparições e de perfil exclusivamente técnico, Teich fez relato consideravelmente mais comedido do que o do médico, mas também político, Luiz Henrique Mandetta (DEM), este acostumado a falas públicas e mais incisivo nas críticas que faz à gestão federal.
O discurso mais vago de Teich passou longe de imputar diretamente a Bolsonaro qualquer responsabilidade pela marca de mais de 414 mil mortos pela Covid-19. Ele foi indagado sobre isso, ao que respondeu que teria de calcular o efeito do comportamento do presidente sobre o número de mortos.
Senadores de oposição, com destaque para Randolfe Rodrigues (Rede-AP), enfileiraram questionamentos na expectativa de que Teich subisse pelo menos um degrau no tom, complicando o Palácio do Planalto.
Os de situação tentaram extrair do médico qualquer resposta que validasse teses sem eco na ciência, como a de que existe um tratamento precoce a ser ministrado antes ou no início do teste positivo para a doença. Ambas as tentativas sem sucesso.
Contudo, a fala do médico se somou à de Mandetta na medida em que descreveu a pouca autonomia dada por Bolsonaro para o combate ao coronavírus e em que destacou a insistência do presidente na ampliação do uso da cloroquina.
Mandetta, inclusive, afirmou que era desejo do militar mudar a bula do medicamento, incluindo a Covid-19 como um vírus remediável com a droga. É uma potencial junção de peças no quebra-cabeça do relatório de Renan Calheiros (MDB-AL).
A defesa de tratamentos falsos para a Covid-19, aliás, foi um capítulo à parte na sessão. O senador Marcos do Val (Podemos-ES) chegou a dizer que toma cloroquina aos fins de semana, sendo repreendido pelo presidente do colegiado Omar Aziz (PSD-AM). Luiz Carlos Heinze (PP-RS) e Eduardo Girão (Podemos-CE) também foram enfáticos na defesa de um hipotético tratamento precoce.
Sabine Boettger Righetti, pesquisadora de Política Científica associada à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com trabalho voltado para a Covid-19, acompanhou a sessão e destacou ao O POVO ser impressionante a falta de clareza de senadores sobre os riscos de se defender “armas não certificadas” para combate ao vírus.
“Justamente para avaliar esses riscos existe a ciência, com ela sabemos, por exemplo, que a aspirina, que é um medicamento super seguro para um monte de doenças, pode ser fatal no caso da dengue”, ilustra a estudiosa.
Segundo Sabine, “o consenso científico é de que a cloroquina não tem efeitos positivos para a Covid-19 e, pior, pode até piorar alguns quadros”. A pesquisadora sublinha não haver valor científico em se apoiar numa única evidência e insistir nela enquanto “a imensa maioria dos trabalhos mostra outra coisa”. (com Agência Estado)
Covid-19
Cloroquina e hidroxicloroquina são comprovadamente ineficazes contra Covid-19, afirma a Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 1º de março deste ano