Membros de etnias indígenas no Ceará relatam que, além das dificuldades encontradas usualmente por essas populações, tais como a disputa pela posse da terra, também têm de enfrentar um novo desafio: a ameaça de facções criminosas.
O fenômeno é relativamente recente. Diferentemente do interesse na propriedade do território, contudo, os grupos criminosos, segundo relatos ouvidos pelo O POVO, tentam assegurar domínio sobre áreas diversas, de modo a utilizarem esse espaço como esconderijo ou local de desova de corpos de vítimas.
Nesse processo, indígenas são ameaçados e mesmo expulsos de moradias, numa repetição do que já é registrado nas periferias de Fortaleza e Região Metropolitana.
"Em alguns territórios do Estado, a gente tem situação de lideranças impedidas de realizar articulação, ou, quando realizam, é com certo receio, por causa da ação de grupos criminosos", conta Thiago Anacé, professor e líder indígena de Caucaia.
De acordo com ele, sem citar nomes de localidades ou de pessoas sob ameaça, há indicação de "áreas em que o crime organizado tem invadido e realizado ações".
"Não é a posse da terra", acrescenta, "mas utilizar aqueles espaços como área de esconderijo. Então, uma área de mata ou de carnaubal às vezes deixou de ser explorada ou utilizada pela comunidade porque o grupo começou a utilizar".
"É um tema delicado", continua o professor, repetindo que "há, sim, a ação de grupos criminosos, amedrontando as lideranças".
No Ceará, são 15 povos reconhecidos pelo movimento indígena, totalizando 36 mil pessoas distribuídas em duas dezenas de municípios, como mostrou O POVO nesse domingo, 12. Apenas uma das terras está regularizada entre os mais de 20 pedidos de regulamentação fundiária.
Cada uma dessas etnias trava uma guerra em frentes que vão desde a especulação imobiliária até batalhas jurídicas com empresários em torno do perímetro das terras, alvo de cobiça de companhias e posseiros interessados na exploração.
Some-se a isso o risco levado pelas facções aos territórios. A discrição do indígena Anacé é uma medida de segurança que se estende a outros membros dessas populações procurados pela reportagem.
Advogado e cacique de seu povo, Jorge Tabajara, do município de Poranga, reconhece: "Temos uma incidência muito forte do crime organizado em nossas aldeias".
"O território indígena fica sendo esse espaço propício para a acomodação dessas organizações, que têm sido um problema, porque nossa juventude acaba também adentrando nesses espaços", expõe o cacique, para quem o caso se agrava porque há um conflito aparente de competência entre Polícia Militar e Polícia Federal quando episódios do tipo são denunciados.
O resultado, conclui Jorge, é que "temos perdido diversos indígenas" em meio a esse conflito, parte por ingressar nesses grupos por supor "que vai ser uma situação e acaba se colocando em outra".
Thiago Anacé complementa que, diante dessas ameaças, seu povo "fica sem saber como agir porque, quando é um posseiro, a gente representa na Justiça, mas quando é um grupo que age com outra lógica, que não é a lógica do Estado, a gente não tem a quem recorrer".
"Secretaria é caminho para construir estratégias"
Líder indígena, Mateus Tremembé, do município de Itapipoca, afirma que problemas enfrentados hoje por populações das 15 etnias no Ceará devem ganhar mais luz com a criação tanto de um ministério quanto de uma Secretaria Estadual dos Povos Indígenas.
No plano nacional, a função será desempenhada por Sonia Guajajara (Psol), titular da pasta criada pelo governo Lula (PT). Já no governo de Elmano de Freitas (PT), a indígena Juliana Alves (PCdoB) estará à frente do cargo de secretária.
Para Mateus, esse novo contexto vai beneficiar seu povo. "Acredito que a secretaria (estadual) é um caminho importante para construir estratégias de incidência das políticas públicas em nossos territórios que dialoguem com a necessidade dos povos", argumenta.
Entre possibilidades de atuação que vão além da questão da segurança pública, por exemplo, estão ações "específicas, como inclusão produtiva".
"O ministério tem dimensão nacional", acrescenta, "mas muitas políticas nacionais foram retiradas nesse processo desde a saída da Dilma (Rousseff, ex-presidente) e acreditamos que essa política vai retornar".
A terra dos Tremembé onde Mateus vive, na Barra do Mundaú, está entre as 13 que deverão ser homologadas nos primeiros 100 dias do governo Lula, conforme compromisso assumido ainda quando do período de transição.
No Ceará, apenas uma terra indígena está totalmente regularizada hoje: também dos Tremembé, fica no município de Itarema.
Há, no entanto, outros 20 pedidos de regularização fundiária. A maior parte das áreas indígenas nem sequer saiu da estaca zero, ou seja, não existe mesmo um grupo de trabalho constituído para começar estudo de demarcação.