A política no Ceará é exercida pelas alianças, mas as bases são estabelecidas nas rupturas. Desde que Cid Gomes (PSB) chegou ao poder, há quase 18 anos, as pactuações políticas são o método para se fazer política. Em 2010 e 2018, em particular, as alianças foram tão amplas que estiveram perto de resolver as eleições antes mesmo do voto.
Porém, o cenário para domínios tão abrangentes não surgiram só das urnas. Eles foram referendados eleitoralmente, mas foram construídos no rompimento de grupos políticos que já estavam no poder. Muitos dos episódios foram ocasionados por falta de espaço, dentro das amplas alianças, em relação àquilo que as forças julgam ser merecedoras.
A semana de tensões entre Cid Gomes e o governo Elmano de Freitas (PT) ameaça produzir mais um rompimento capaz de transformar o panorama das forças no Estado. Mais emblemático por partir do arquiteto desse aliancismo, e que indicou ter agora a iniciativa do que pode ser um rompimento.
O atual ciclo político ascendeu com uma alternância de poder na eleição de 2006. Cid foi candidato de oposição contra Lúcio Alcântara, que estava no PSDB. A situação, todavia, era bem particular. O PSB era situação até meses antes da eleição. A campanha começou em julho e, até abril, havia indicado do partido nos quadros do Governo do Estado. A saída foi no prazo de desincompatibilização. Oficialmente, não houve uma declaração de rompimento.
Na campanha, o PSDB tinha as maiores bancadas parlamentares e seguiu sendo a maior na Assembleia Legislativa e a segunda maior na Câmara dos Deputados naquela eleição. Tinha o maior número de prefeitos e continuou a ser após a eleição de 2008.
Entretanto, houve um grande racha dentro do partido, entre Lúcio e o principal líder tucano no Ceará, Tasso Jereissati, que não queria a reeleição do então governador. O senador à época se afastou da campanha e os aliados dele trabalharam a favor de Cid, que foi eleito no 1º turno.
O PSDB aderiu e fez parte do governo que, em teoria, iniciava uma nova ordem em relação às duas décadas de poderio tucano. Houve alternância de governante. A liderança dentro do bloco que estava no poder também mudou. Mas, o grupo que governava não saiu, de fato, do poder. A fatia mais relevante das forças de situação apoiou a nova ordem desde a campanha.
Aquele grande rompimento em 2006 lançou as bases da aliança que governa o Ceará até hoje. Quando os Ferreira Gomes romperam com o governo Lúcio, abriram a porta para a aliança com o PT e também com o PMDB (que ainda não tinha perdido o "P"), entre tantos outros.
A via de acesso para a chegada ao Governo do Estado do PT, que já completa dez anos no posto, foi o acordo com um grupo que já estava dentro das estruturas de poder e havia rompido de forma delongada. Rupturas e repactuações internas, com Tasso, Eunício Oliveira (MDB) e Domingos Filho (PSD), entre outros, deram as feições do grupo atual. O estremecimento com Cid agora é mais uma peça desse processo.
Se a chegada de Cid Gomes ao poder foi uma ruptura suave, a de Tasso Jereissati, duas décadas antes, foi extrema, barulhenta e conflituosa. Porém, diferentemente de Cid, a eleição de Tasso não foi uma alternância de poder. Ele teve apoio do governador de então, Gonzaga Mota. O rompimento se deu após a eleição, na montagem do governo e nas manifestações sobre a situação em que encontrou o governo.
Pelas duas décadas seguintes, praticamente todos os personagens mais relevantes da política no Ceará vieram de dentro do tassismo, com exceção da esquerda. O chamado "mudancismo" — derivação do slogan "Governo das Mudanças" — projetou Ciro Gomes, Cid Gomes, Juraci Magalhães, Sergio Machado, Welington Landim, Patrícia Saboya, Moroni Torgan e Lúcio Alcântara, vários dos quais viriam a ser, em algum momento, adversários de Tasso.
Antes de Tasso, houve outra ruptura, de Gonzaga Mota com os coronéis. Mas, também não houve alternância de poder nas urnas, pois "Totó", como é conhecido, havia sido eleito com apoio do triunvirato Virgílio Távora, César Cals e Adauto Bezerra, que dividiam o poder na época da ditadura. No cargo, ele se tornou o primeiro governador do Brasil a apoiar as "Diretas Já", o que o levou a bater de frente com aqueles a quem devia a eleição.
Os três coronéis não viviam em harmonia. Eles dividiam o poder no Estado durante a ditadura, mas disputavam entre eles, com direito a rasteiras, puxões de tapete e medições de força. A própria candidatura de Gonzaga Mota passou por mediação do Governo Federal, pois cada coronel tinha um preferido para a cadeira. "Totó" foi o plano B de Virgílio para sair do impasse, após não conseguir emplacar o favorito, Aécio de Borba.
A oposição não costuma ter vida fácil em eleições no Ceará, pela ascendência do poder estadual sobre as prefeituras do Interior, onde está a maior parte dos votos. Cid Gomes se elegeu em 2006 como candidato de oposição, mas, conforme registrado, vinha de dentro do governismo, onde manteve a força política. E tinha o apoio do Governo Federal, além da Prefeitura de Fortaleza.
Antes, o último governador de oposição a se reeleger havia sido Parsifal Barroso, em 1958. Foi outro caso de rompimento ao longo do governo, pois ele havia apoiado a eleição do governador Paulo Sarasate em 1954.
Curiosamente, se hoje a oposição tem dificuldades para eleger o governador, antes da ditadura militar, houve frenética alternância de poder. Em 1946, elege-se Faustino Albuquerque, da UDN. Na eleição seguinte, em 1950, venceu a oposição, com Raul Barbosa, do PSD (uma das versões anteriores, não o atual).
Em 1954, a oposição venceu de novo, com Paulo Sarasate da UDN. E de novo em 1958, com Parsifal, do PTB. No período, Parsifal foi o único governador a conseguiu fazer o sucessor, ao apoiar Virgílio Távora, da UDN.
A realidade hoje é outra. O pequeno número de partidos estimulava a polarização e contribuía para o cenário estadual se reproduzir nos municípios. Nos últimos 40 anos, as mudanças não ocorreram de fora para dentro do poder, mas de dentro para fora.
Linha do tempo dos rompimentos
Rompimentos de maior impacto na política do Ceará nos últimos 40 anos
1984: Gonzaga Mota rompe com os coronéis
O triunvirato de coronéis Virgílio Távora, César Cals e Adauto Bezerra escolheu, de forma surpreendente, Gonzaga Mota para ser candidato na primeira eleição direta para governador desde o golpe de 1964. Empossado em 1983, "Totó" rompeu com os velhos padrinhos
1987: Tasso rompe com Gonzaga Mota
O governador Gonzaga Mota lançou Tasso Jereissati como candidato em 1986, pelo PMDB, contra Adauto Bezerra. Eleito e empossado, Tasso rompeu com Gonzaga
1990: Juraci e Ciro Gomes rompem
Juraci Magalhães era vice-prefeito e assumiu quando o prefeito Ciro Gomes renunciou para concorrer a governador. Mas, Juraci não apoiou Ciro e os dois romperam
1992: Sergio Machado rompe com Tasso
Sergio Machado foi o principal secretário do primeiro governo Tasso e sonhava ser candidato a governador, quando o escolhido foi Ciro. Sergio e Tasso deixaram de se falar em 1998, mas Tasso já tratava Sergio como dissidente desde 1992
1997: Tasso e Moroni rompem
Moroni Torgan foi secretário da Segurança no primeiro governo Tasso (1987-1991). No segundo governo (1995-1998), virou vice-governador e tinha a área de segurança subordinada a ele. Quando estourou o "caso França", escândalo de corrupção policial, os dois romperam. Acabariam se recompondo uma década mais tarde
2001: Welington Landim rompe com Tasso
Welington Landim se elegeu presidente da Assembleia Legislativa em 1999 e se reelegeu em 2001. Neste último ano, rompeu com o PSDB, abriu dissidência, criou problemas para o governo. Tasso fez denúncias públicas sobre a folha de pagamentos da Assembleia
2006: Tasso rompe com Lúcio
Tasso queria que Lúcio Alcântara não concorresse à reeleição, disputasse o Senado e apoiasse Cid Gomes. Lúcio não aceitou e houve o rompimento
2010: Tasso rompe com Cid
Havia três partidos da base do governo Cid que queriam as duas vagas no Senado. Uma estava prometida para Eunício Oliveira, do então PMDB. O PT reivindicava outra para José Pimentel. E Tasso Jereissati (PSDB) queria a reeleição. Sem definição, rompeu com Cid e lançou Marcos Cals para o governo. Cid foi reeleito governador e Eunício e Pimentel viraram senadores. Cid afirma que Tasso se precipitou quando ele ainda costurava o arranjo para atender o PSDB
2012: Cid rompe com Luizianne
A relação entre governo Cid e a prefeita de Fortaleza, Luizianne Lins (PT), enfrentou problemas. Na sucessão municipal, Cid dizia querer apoiar o PT, mas dependia do nome. Fez sugestões, que Luizianne não acatou. O candidato foi Elmano de Freitas. Cid lançou Roberto Cláudio, que foi eleito
2014: Eunício rompe com Cid
Eunício Oliveira queria concorrer a governador com apoio de Cid. Não conseguiu e foi para a disputa. O então governador lançou Camilo Santana (PT), que foi eleito.
2016: Domingos Filho rompe com o bloco governista
O grupo de Domingos Filho foi para a disputa com base do governo na Assembleia Legislativa e no Tribunal de Contas dos Municípios (TCM). Na Assembleia, Zezinho Albuquerque, candidato do governo, reelegeu-se contra Sérgio Aguiar (PDT), apoiado por Domingos. No TCM, Domingos se elegeu presidente, mas a base aliada estadual mudou a Constituição estadual para extinguir o tribunal. Após ensaiar candidatura de oposição, Domingos voltou à base do governo em 2018.
2022: Camilo rompe com Ciro
Camilo renunciou ao governo e assumiu a vice, Izolda Cela, então no PDT, com o projeto de que ela fosse para a reeleição. Mas o PDT, liderado por Ciro Gomes, escolheu Roberto Cláudio como candidato. O PT anunciou o rompimento e lançou Elmano de Freitas. Izolda se desfiliou. Cid Gomes ficou neutro. Após a eleição, aderiu ao governo Elmano e foi para o PSB, e consolidou o rompimento com Ciro e Roberto Cláudio.
2024: Cid rompe com Elmano?
Aliados de Cid Gomes disseram que ele rompeu com Elmano, em protesto contra a concentração de poder do PT, que tem governo federal, governo do Estado, elegeu Evandro Leitão prefeito de Fortaleza e, o estopim, decidiu lançar Fernando Santana como candidato a presidente da Assembleia Legislativa
Protagonistas da aliança governista romperam com Cid
As eleições de Elmano de Freitas (PT) para governador em 2022 e de Evandro Leitão (PT) para prefeito de Fortaleza neste ano tiveram entre os principais apoiadores personagens que já tiveram rompimentos com Cid Gomes (PSB). Pelo menos um deles, até hoje, não bem digerido. Notadamente o caso de Eunício Oliveira (MDB), que indicou a hoje vice-governadora Jade Romero (MDB).
Em 2014, Eunício provocou profunda e rumorosa divisão na base cidista e disputou o governo contra Camilo Santana (PT). Mais tarde, o emedebista se recompôs com Camilo, mas nunca se entendeu com os Ferreira Gomes — notadamente Ciro Gomes e Roberto Cláudio — os dois a quem responsabiliza pela derrota na tentativa de se reeleger senador, em 2018.
Na eleição de Evandro, a indicação da vice-prefeita eleita Gabriella Aguiar (PSD) foi do pai dela, Domingos Filho, cujo rompimento com os Ferreira Gomes, em 2016, levou à extinção do Tribunal de Contas dos Municípios (TCM).
Domingos, assim como Eunício, queria ser candidato a governador em 2014. Preterido, foi indicado para o TCM, onde passou a arquitetar um projeto próprio. Em 2016, elegeu-se presidente do Tribunal contra o favorito do Palácio, por 4 votos a 3. No mesmo dia, 1º de dezembro, houve a eleição para presidente da Assembleia Legislativa (Alece). Domingos apoiou Sérgio Aguiar (PDT), filho do então presidente do TCM, Francisco Aguiar. Nesse caso, o candidato governista, Zezinho Albuquerque, venceu, por 27 votos a 18.
Vinte dias depois, a Alece aprovou uma proposta de emenda à Constituição (PEC) estadual para extinguir o TCM. O Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu a tramitação e uma nova PEC foi apresentada, para corrigir os problemas identificados. Em 2017, a nova PEC foi aprovada e o TCM foi extinto de vez. Após ensaiar candidatura de oposição, Domingos voltou à base do governo em 2018.
A propósito, Zezinho Albuquerque, outro apoiador importante para a sustentação tanto de Elmano quanto de Camilo, não chegou a romper com Cid, mas deixou o PDT em 2022, antes ainda de todo o conflito relacionado à candidatura de Roberto Cláudio. Na saída para o PP, Zezinho reclamou de falta de espaço e prestígio políticos.
Rompimentos deram força às oposições
A última vez em que uma força originada na oposição, que não era dissidência do governo, conseguiu dar trabalho numa eleição estadual foi em 2002, quando José Airton Cirilo (PT) passou muito perto de ser eleito. Ao longo dos anos, os rompimentos tanto construíram o cenário para os governos como moldaram também as oposições.
Na oposição ao governo Elmano de Freitas (PT), além do bloco da direita, há o grupo de Ciro Gomes e Roberto Cláudio (ambos do PDT), parte do antigo grupo governista. Camilo Santana (PT), até 2017, teve na linha de frente da oposição Eunício Oliveira (MDB), que havia sido importante aliado de Cid Gomes (PSB), e voltaria a ser com o próprio Camilo.
Cid teve também como adversário, por todo o mandato, Lúcio Alcântara, governador com quem rompeu e a quem venceu. Lúcio enfrentou a candidatura de Cid à reeleição, em 2010, e impulsionou Capitão Wagner (União Brasil).
Antes de Cid, Tasso Jereissati (PSDB) teve vários opositores que eram antigos aliados. Para fazer o sucessor, Lúcio, em 2002, houve enfrentamento contra Sergio Machado e Welington Landim.
Na segunda eleição, em 1994, o tucano enfrentou Juraci Magalhães, que havia sido vice de Ciro Gomes na Prefeitura de Fortaleza. Juraci perdeu, mas seguiu por uma década como calo de Tasso na Capital. Igualmente surgido dentro do "mudancismo", Moroni Torgan foi outro que deu trabalho a Tasso em Fortaleza, depois de ter sido vice-governador na chapa dele.
Na reeleição, em 1998, Tasso derrotou Gonzaga Mota, que o havia lançado ao governo em 1986.