A eleição presidencial nos Estados Unidos em 2020 traduziu fenômenos que todas as regiões do mundo já experimentaram em algum momento da história: a polarização da disputa, o questionamento de regras e a utilização de ferramentas democráticas para fins de contestação da própria democracia.
Nos EUA, Joe Biden teve vitória confirmada esta semana no Colégio Eleitoral. Seu rival, Donald Trump, fez o que pôde para minar o processo, mas acabou duplamente derrotado. Nas urnas e nas instituições do país que recusaram-se a embarcar na aventura populista sugerida por ele. O revés do republicano, no entanto, parece longe de ser um ponto final.
O pleito deste ano mostrou, novamente, como grupos populistas e ultranacionalistas usam o pretexto de defesa da democracia para subvertê-la. Mesmo quando Biden tomar posse, em 20 de janeiro (ver gráfico), Trump deverá manter discurso de “eleição roubada”.
A estratégia do trumpismo ao alegar fraude eleitoral, sem apresentar provas, não é reverter o resultado, mas cimentar o caminho para sobreviver como força política. Afinal de contas, Trump é o candidato à reeleição mais votado na história das eleições americanas: 74,22 milhões de sufrágios.
Ainda em 2018, o cientista político estadunidense Steven Levitsky escreveu o livro ‘Como as Democracias Morrem’ analisando o caso americano, em particular nas eleições de 2016, a partir de experiências de outras nações que tiveram democracias fragilizadas. A obra traz à tona a reflexão de que, na atualidade, essa corrosão democrática raramente ocorre por via autoritária direta, mas pelo uso de mecanismos legais e pela quebra de normas não escritas.
“Como não há um momento único – nenhum golpe, declaração de lei marcial ou suspensão da Constituição – em que se ultrapassa o limite para a ditadura, nada é capaz de disparar os dispositivos de alarme da sociedade”, escreveu Levitsky.
No caso da eleição americana deste ano, diversas manobras da equipe de Trump ilustram bem o cenário. A última delas deve ocorrer no dia 6 de janeiro, quando deputados e senadores confirmarão os votos do Colégio Eleitoral.
Nesse momento, a Constituição prevê a possibilidade de contestação do resultado. Para isso, um deputado e um senador precisam lançar uma objeção. A partir daí, ocorrem discussões e votações em ambas as Casas para validar ou não as objeções.
O deputado republicano Mo Brooks (Alabama), aliado de Trump, antecipou que questionaria o resultado na Câmara. Isso faria com que Trump precisasse de apenas um senador disposto a fazer o mesmo.
Entretanto, a possibilidade de sucesso é praticamente nula. Para que a objeção seja acolhida é necessário o apoio da maioria das casas do Congresso.
No Senado, com mais republicanos, a manobra poderia ganhar um breve fôlego, mas seria rapidamente asfixiada na Câmara, controlada pelos democratas. Apesar de sem efeito prático, a atitude no atual contexto mostraria o uso de um mecanismo constitucional para questionar o resultado da eleição e, consequentemente, a democracia.
Carlos Gustavo Poggio, professor de Relações Internacionais da Faculdade Armando Álvares Penteado (Faap), explica que esgotaram-se os recursos legais para que Trump permaneça no cargo. Único cenário possível seria de Joe Biden morrer antes da posse e se o Congresso decidisse que os votos dados não seriam mais validos.
"Tirando a morte do Joe Biden não há mais possibilidades de Trump seguir no cargo. O máximo que eles podem fazer é atrasar um pouco a sucessão", explica, apontando que a democracia nos EUA sai “fragilizada” deste ano atípico.
“Hoje em dia a democracia não morre por um golpe de Estado, mas pela quebra de várias normas que vão sendo corroídas. A gente deu mais um passo, em termos de deterioração da democracia, neste ano. O Trump convenceu muita gente nos EUA que a eleição foi roubada, que o Biden é ilegítimo e que a própria democracia americana é uma fraude”, pontua.
Em contrapartida, Poggio avalia que o trumpismo sai mais forte de 2020, mas que as métricas deverão ser auferidas apenas em 2022, nas eleições legislativas.
“Que tipo de pessoa vai se eleger? Aquela mais distante do perfil de Trump ou aquela mais fidedigna a ele. Tendo a achar que o trumpismo deve permanecer como uma força, a questão é por quanto tempo? Essa resposta nós teremos nas eleições daqui a dois anos”, encerra.