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Entenda o racha ocorrido em facção cearense; Cisão já gerou ao menos 10 mortes
Reportagem

Entenda o racha ocorrido em facção cearense; Cisão já gerou ao menos 10 mortes

Ex-integrantes da Guardiões do Estado (GDE) resolveram aderir a uma facção carioca, gerando um conflito que resultou, entre outros, em uma chacina no Lagamar
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Maior parte dos homicídios no Ceará estaria ligado à guerra entra facções criminosas (Foto: JULIO CAESAR)
Foto: JULIO CAESAR Maior parte dos homicídios no Ceará estaria ligado à guerra entra facções criminosas

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Por volta das 15 horas do último dia 19 de fevereiro, Francisco Gerlisson Martins Silva, 16 anos, estava sentado debaixo de uma árvore na frente de sua casa, no bairro Jangurussu. Foi quando, pelo menos, quatro pessoas o cercaram. Os criminosos questionaram se a vítima pertencia à facção criminosa Guardiões do Estado (GDE) ou se havia rachado. A vítima respondeu apenas que era “das áreas”; em seguida, os criminosos atiraram contra ele e fugiram.

Este foi apenas um dos, pelo menos, 10 homicídios ocorridos somente em fevereiro que, conforme investigações da Polícia Civil, têm relação com um racha ocorrido na GDE. Além do Jangurussu, a dissidência também foi observada em bairros como Ancuri, Conjunto Palmeiras e São João do Tauape. Neste último bairro foi onde foi registrada, em 18 de fevereiro, uma chacina que deixou quatro mortos, também resultado dessa cisão na facção cearense.

Conforme a Polícia Civil, o racha ocorreu após chefes da GDE decidirem deixar a facção e estabelecer uma aliança com o Terceiro Comando Puro (TCP), grupo criminoso originário do Rio de Janeiro que ainda não tinha atuação no Estado.

 

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Conforme o relatório técnico nº 21/2022 do Núcleo de Inteligência Policial (NUIP), do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), ao qual O POVO teve acesso, seriam três os pivôs desse conflito: Felipe Bruno Nunes Pereira, o "Boladão"; Ismário Wanderson Fernandes da Silva, o "Bacurau" e o "Argentino"; e Aílton Maciel Lima, o "Véi". Todos eles têm mandado de prisão em aberto; Ismário ainda consta na lista de mais procurados da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS).

Ainda conforme o relatório, o trio teria ido ao Rio de Janeiro efetivar a aliança, o que desagradou integrantes da GDE. Internamente na facção, o movimento foi considerado um "golpe de estado". “Por tal motivo, instalou-se um conflito interno, onde vários faccionados tiveram suas mortes decretadas, dando início a uma série de homicídios”, diz o relatório.

Ismário é apontado no relatório como chefe do tráfico no Conjunto Jagatá, no Conjunto Palmeiras; e Aílton comandaria ruas dos conjuntos Maria Tomásia e José Euclides Ferreira Gomes. Já Felipe Bruno é apontado como chefe de parte do Lagamar.

O conflito se deu de forma mais acentuada na região do bairro Jangurussu, sobretudo, no Conjunto Habitacional Maria Tomásia. A primeira morte desse ciclo de violência é a de um homem que também é apontado como chefe do tráfico naquela região: Josenildo Marques Palhano, conhecido como “Sal”, de 33 anos, foi morto em 16 de fevereiro no Maria Tomásia.

Conforme um depoimento acostado ao inquérito que investiga esse crime, foi o trio Boladão, Argentino e Véi que ordenou a execução. "Foram usadas 4 (quatro) pistolas novas, na caixa, vindas do Rio de Janeiro, para a morte de SAL”, afirmou a testemunha à Polícia Civil. Após o homicídio, seguiu-se um ciclo de vingança, em que suspeitos de participar da morte de Sal foram mortos — confira a linha do tempo abaixo.

“Depois que mataram o SAL, o grupo de FORMIGA passou a 'descontar' em qualquer pessoa que demonstrasse vínculo com ARGENTINO, SEU CHICO etc”, afirmou a testemunha. Formiga é José Renan Oliveira Marinho, cunhado e apontado como homem de confiança de Josenildo e que o substituiu no comando do tráfico enquanto estava preso.

Apesar da lealdade a Sal e da rivalidade com o trio que teria o matado, Formiga também decidiu deixar a GDE e passou a integrar a chamada “Massa”, mesma organização surgida no racha do Comando Vermelho ocorrido em 2021, também conhecidos como “Neutros”. Após assumir o controle, Formiga expulsou mais de 50 famílias do Maria Tomásia, afirmou a testemunha. O domínio de uma nova organização levou a GDE a buscar retomar o domínio do local, levando a ofensivas criminosas no condomínio.

Após os assassinatos ocorridos em fevereiro, outros episódios de violência foram registrados naquela região. Além das expulsões, entre os crimes registrados estão três homicídios ocorridos entre 28 e 30 de março no José Euclides. O conflito ainda teria tido um outro ator, com a aliança da "Massa" com a facção paulista Primeiro Comando da Capital (PCC).

 

Linha do tempo dos homicídios registrados pelo racha na GDE

16 de fevereiro de 2022
20 horas
Rua Leila Diniz, 164 — Jangurussu
Josenildo Marques Palhano, o “Sal”, de 33 anos
O primeiro assassinato desse ciclo de violência teve como vítima um homem apontado como liderança da GDE no conjunto Maria Tomásia. Josenildo teria assumido o controle da quadrilha após o seu irmão, Emanoel Marques Palhano, ser preso. Conforme a Polícia Civil, Boladão, Véi e Argentino ordenaram a execução direto do Rio de Janeiro. O trio e Diogo ngelo Ferreira Bezerra foram denunciados pelo Ministério Público pelo homicídio. Júlio Cesar Arcanjo da Silva Lima também teria participado do crime, mas viria a ser morto dias depois.

16 de fevereiro de 2022
20h20min
Residencial Luis Gonzaga — Jangurussu
Francisco Onofre Gomes Menezes, de 32 anos
Cerca de 20 ou 30 minutos após a morte de Sal, Francisco Onofre foi morto a tiros no condomínio Luiz Gonzaga no que pode ter sido uma retaliação por aquele crime. Conhecido como André, ele também seria integrante da GDE. Nenhum suspeito deste crime foi preso.

17 de fevereiro
15 horas
Rua Verde, 44 – Ancuri
Velasquez Freires Lopes, de 17 anos
Também é apontado como integrante da GDE pela Polícia Civil. Nenhum suspeito deste crime foi preso.

17 de fevereiro
17h23min
Rua Nilo Firmeza, 357 – Conjunto Ademir Martins — Jangurussu
João Batista Lima, de 21 anos
Morto com nove tiros, sendo seis na cabeça, em crime ocorrido no Conjunto Ademir Martins. Nenhum suspeito deste crime foi preso.

18 de fevereiro
17 horas
Rua Sousa Pinto – Alto da Balança
Airton da Silva Defino, o Boca, de 27 anos; Yuri da Silva Souza, o Testa, de 21 anos; Eduardo Beserra do Nascimento, o Dudu, de 18 anos; e Cauê Silva da Paz, de 16 anos.
A chacina no Lagamar. Vítimas seriam ligadas a Felipe Bruno Nunes Pereira, o Boladão. Ao todo, as vítimas foram atingidas por mais de 70 disparos. Oito suspeitos foram identificados, mas ninguém foi preso até o momento.

19 de fevereiro
14h10min
Comunidade Jagatá – Conjunto Palmeiras
Júlio Cesar Arcanjo da Silva Lima, o “Beijim”, de 19 anos
Aparece em um vídeo que registra os autores do assassinato de Sal. Conforme a Polícia Civil, Júlio Cesar já havia dito para algumas pessoas que estava “decretado”. Seis suspeitos foram identificados por participação no crime. Entre os executores estava um homem que seria amigo dele, mas foi obrigado a matá-lo como prova de lealdade. Na mesma ação, um outro homem ficou ferido. Ambas as vítimas seriam integrantes da GDE.

19 de fevereiro
14h40min
Rua Nara Leão, 212 — Jangurussu
Francisco Gerlisson Martins Silva, de 16 anos
Morto por quatro homens que desceram de um carro preto e perguntaram à vítima de qual “lado” ele era. Conforme a Polícia Civil, a vítima era integrante da GDE, mas queria fugir do bairro por não se sentir seguro após a morte de Sal. Testemunha afirmou que, após a morte de Sal, o bando de Formiga buscou vingar-se matando qualquer pessoa que demonstrasse ter vínculo com Argentino e Véi, o que era o caso de Francisco Gerlisson.

 

Outros episódios de violência na região nos meses seguintes

23 de março
Policiais civis recebem a informação que comparsas de Felipe Boladão entregariam entorpecente em uma residência no Jangurussu. Os policiais flagraram quando Juliana Carneiro do Nascimento desceu de um veículo com uma caixa de papelão contendo 21kg de drogas diversas. Um comparsa da mulher ainda ofereceu, através de ligação ao telefone de Juliana, R$ 10 mil aos policiais que efetuaram a prisão e, com a recusa, passou a ameaçá-los de morte

30 de março
Três pessoas foram mortas no Conjunto Habitacional José Euclides em 72 horas. As mortes ocorreram em 28, 29 e 30 de março. Os nomes das vítimas não foram divulgados.

11 de abril
PMs são acionados para uma ocorrência de tiroteio entre facções rivais no Maria Tomásia. Eles se deparam com um trio, que passa a atirar contra a composição. Os PMs revidam e ferem Gerlano Sales de Souza, que é preso. Os outros dois escapam

11 de abril
Homem aborda PMs afirmando que ele e outras pessoas haviam sido expulsos de suas casas no Maria Tomásia por faccionados da Massa. Ele indica onde estariam os criminosos e, na abordagem, a PM prende Darlison Abreu Farias, 27, com um revólver

12 de abril
PMs ouviram disparos de armas de fogo durante patrulhamento de rotina no Maria Tomásia. Em abordagem, conseguiram prender Lorran da Silva Fernandes, com um revólver e uma pistola

21 de maio
Um homem de 45 anos é morto a tiros na avenida Cora Coralina entre os residenciais José Euclides Ferreira Gomes e Maria Tomásia. O caso é investigado

 

Suspeitos de chacina no Lagamar que deixou quatro mortos são identificados

Seriam três mandantes e cinco executores, conforme a Polícia Civil

Mais de três meses após a chacina que deixou quatro mortos na comunidade do Lagamar, no bairro São João do Tauape, nenhum suspeito do crime foi preso. Entretanto, O POVO apurou que a Polícia Civil já levantou o nome de pessoas que podem ter praticado a matança. Na ação, foram mortos: Airton da Silva Defino, o Boca, de 27 anos; Cauê Silva da Paz, de 16 anos; Eduardo Beserra do Nascimento, o Dudu, de 18 anos; e Yuri da Silva Souza, o Testa, de 21 anos.

Cinco homens foram identificados como tendo participação nas quatro execuções, conforme o relatório técnico nº 21/2022 do Núcleo de Inteligência Policial (NUIP), do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). Além deles, três homens foram apontados como mandantes do crime.


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 Ainda segundo o relatório, as vítimas da chacina eram considerados "meninos" — ou seja, subordinados — de Felipe Bruno Nunes Pereira, o "Boladão", um dos integrantes da GDE que resolveu romper com a facção e aliar-se ao Terceiro Comando Puro (TCP). Ainda segundo o DHPP, Airton era, inclusive, um dos "matadores" da GDE na Rua do Canal. Yuri, por sua vez, havia retornado recentemente do Rio de Janeiro, onde se encontrou com Boladão. A informação chegou a lideranças da GDE do Lagamar e teria desencadeado a matança.

Boladão também era chefe da GDE no Lagamar, mas dividia o território com os então aliados. Além disso, Felipe Bruno ainda seria ligado a Francisco Tiago Alves do Nascimento, o Tiago Magão, preso em 2019 e que investigações da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco) apontam como sendo um dos "conselheiros finais" da GDE.

Boladão também foi citado na operação Reino de Aragão, deflagrada em 2019 pela Polícia Federal, como possível financiador de um fuzil .50, arma com capacidade para derrubar helicópteros. O valor estimado para a compra do fuzil era R$ 300 mil. Aílton Maciel Lima, o "Véi" também foi citado na Reino de Aragão. Ele seria "conselheiro final" da GDE e teria participado "ativamente" da coordenação dos ataques a prédios públicos e privados em setembro de 2019.

O inquérito que investiga a chacina do Lagamar “segue com investigações e oitivas em andamento”, informou a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS)l. A 7ª Delegacia do DHPP é a responsável pelo caso. “Mais informações não podem ser repassadas para não comprometer os trabalhos policiais”, disse a SSPDS em nota.

 

500 pessoas foram presas em região que engloba Jangurussu

Posicionamento da SSPDS

Diante da guerra entre facções desencadeada, sobretudo, no bairro Jangurussu com o racha na Guardiões do Estado (GDE), O POVO procurou a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) para saber quais ações estão sendo desenvolvidas naquela área. Em nota, a SSPDS destacou que a Área Integrada de Segurança 3 (AIS 3), onde está localizado o Jangurussu, registrou a captura de 500 pessoas neste ano de 2022. Além do Jangurussu, na AIS 3, ficam bairros como Messejana, Conjunto Palmeiras, Barroso e Lagoa Redonda.

Na última sexta-feira, 27, o Residencial Maria Tomásia recebeu a operação Domus, iniciativa que conta a ação integrada de policiais civis, militares, da Polícia Rodoviária Federal e do Corpo de Bombeiros. Um dia antes, havia sido a vez do José Euclides Ferreira Gomes receber a operação. Na ação, foram apreendidos 50 gramas de maconha, 15 gramas de cocaína, uma balança de precisão e dois rádios comunicadores. O balanço da operação Domus no Maria Tomásia não havia sido divulgado até o fechamento desta matéria.

A nota da SSPDS ainda destaca que nos quatro primeiros meses deste ano uma redução de 7,6% no número de homicídios foi registrada em comparação com o mesmo período do ano passado. Enquanto entre janeiro e abril de 2021, 1.080 assassinatos foram registrados no Estado, em 2022, este número é de 998. A SSPDS lembrou que 2021 já havia registrado uma retração no número de homicídios em comparação com 2020 — 18%, já comparando todo o ano.

"Importante destacar ainda que em quatro anos, R$ 187 milhões em bens pertencentes a esses grupos foram confiscados pela Polícia Civil, o que fortalece a descapitalização das organizações criminosas", afirmou a SSPDS. "Importante destacar ainda que a Coordenadoria de Inteligência (Coin) da SSPDS e o Departamento de Inteligência Policial (DIP) da Polícia Civil monitoram a movimentação desses grupos".

 

Racha no CV vem desde junho de 2021

Assim como os rivais da Guardiões do Estado (GDE), o Comando Vermelho (CV) também registrou um racha em suas fileiras. Essa dissidência, porém, se deu ainda em junho de 2021. Como O POVO mostrou na ocasião, fontes de inteligência apontavam que criminosos 21 localidades de Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza, decidiram deixar o CV e tornar-se "Neutros" ou “Massa".

O racha gerou uma rivalidade entre os antigos aliados e diversos homicídios foram registrados no Município, assim como diversas expulsões de moradores. No mais grave episódio do conflito, cinco pessoas foram assassinadas em uma chacina no distrito de Boqueirão das Araras em 1º de agosto de 2021. Suspeitos presos pelas mortes afirmaram que algumas das vítimas eram "neutros" e o grupo havia os expulsado de suas casas quando eles se negaram a deixar o CV.

Depois de Caucaia, foi a vez da Grande Messejana registrar o racha. Somente nos primeiros dias de agosto, mais de 10 homicídios atribuídos ao conflito foram registrados pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) na região. No fim do ano, foi a vez do bairro Sapiranga ver criminosos deixando o CV. Neste bairro, o conflito provocou uma chacina que deixou cinco mortos em plena noite de Natal.

E, neste ano, também o bairro Pirambu viu a dissidência se dar. Entre os crimes registrados por conta dessa dinâmica, está um duplo homicídio em 4 de março, que vitimou Edmilson Feitosa dos Santos Filho e José Raphael de Oliveira.

“Dos autos apurou-se que a vítima, Edmilson Feitosa dos Santos Filho, V. "Filho" era integrante da facção criminosa Comando Vermelho, [..], conhecido ainda por ser o "frente" da AREIA GROSSA, no entanto ao ser preso em meados de 2018 perdeu o comando do tráfico daquela região”, afirmou o Ministério Público Estadual (MPCE) em denúncia contra quatro acusados pelo crime. “Quando esta vítima alcançou a liberdade em dezembro de 2021, passou a pertencer aos quadros da agremiação MASSA CRIMINOSA, e passou a comercializar substancias entorpecentes na região da Areia Grossa, sendo este o motivo [...] de sua morte”.

 

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Episódio 1: A Onda de Violência


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