Depois de 2.777 dias de espera, finalmente, os familiares das vítimas da Chacina da Grande Messejana poderão ver sentados no banco dos réus parte dos acusados pela matança que deixou 11 pessoas mortas na madrugada do dia 12 de novembro de 2015.
Nesta terça-feira, 20, a partir das 9 horas, tem início o julgamento de 4 dos 33 policiais militares que são réus pelo crime, também conhecido como Chacina do Curió. Serão julgados os soldados Marcus Vinícius Sousa da Costa, António José de Abreu Vidal Filho, Wellington Veras Chagas e Ideraldo Amâncio.
O dia era aguardado ansiosamente por Edna Carla Souza Cavalcante, mãe de Álef Souza Cavalcante, de 17 anos, uma das vítimas da matança. "Foram quase oito anos de luta, de peleja, muita comida entalada (na garganta), choro de baixo do chuveiro, noites não dormidas e mal dormidas", relata uma das fundadoras do coletivo Mães do Curió, que se desdobrou no movimento Mães da Periferia, que reúne familiares de vítimas de violência policial.
Edna diz estar confiante para ver a Justiça sendo feita. Ela destaca trabalhos feitos ao longo desses anos pelo movimento visando pressionar autoridades para que o caso seja elucidado. São exemplos disso o livro "Onze — Movimento Mães e Familiares do Curió com Amor na Luta por Memória e Justiça", que conta a história de cada um dos mortos na chacina; e a exposição "Nomes", que também visou resgatar a memória das vítimas. O apoio de outros movimentos sociais também foi fundamental, conforme conta Edna.
“Eu acredito nas forças que emanam do meu filho, de Deus. Estou confiante que a gente vá fazer Justiça para que a periferia não sofre mais essas mortes”, afirma. “Foi muita pressão, sofrimento, angústia… Não ter mais o filho para preparar um aniversário, nunca mais botar uma mesa em uma data comemorativa, só comemorar porque tem outras pessoas… É muito cruel passar por essa dor, por essa tristeza, sem ter a proteção do Estado para resolver a situação”.
Para o julgamento, as mães e demais familiares das vítimas da chacina preparam uma vigília, que será reforçada por outros movimentos sociais. Nas redes sociais, já há algumas semanas, uma série de publicações e campanhas foram feitas visando mobilizar a população para o julgamento — um exemplo é a conta no Instagram 11docurio.
O Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) também preparou um expediente especial para o Júri Popular. Um site (https://juri-curio.tjce.jus.br/) foi criado com informações sobre o caso. Há ainda um link para a transmissão ao vivo da sessão. O TJCE divulgou que se inscreveram para acompanhar o julgamento mais do que quatro vezes o número de pessoas que o 1º Salão do Júri comporta (225).
No julgamento, serão ouvidas 20 testemunhas, sendo as 7 vítimas sobreviventes, 4 testemunhas de acusação, 9 testemunhas de defesa, além dos 4 primeiros acusados. Além disso, todo o conjunto probatório levantado em cinco meses de investigação pela Delegacia de Assuntos Internos (DAI) será utilizado.
São, entre outros, imagens de fotossensores e câmeras de vigilância, relatórios que identificam a utilização das antenas da rede de telefonia móvel na região, laudos balísticos, extração de dados de celulares, depoimentos de mais de 100 pessoas, interceptações telefônicas, rastreamento dos itinerários de viaturas e áudios de ocorrência da Coordenadoria Integrada de Operações de Segurança (Ciops).
Outros dois julgamentos da Chacina da Grande Messejana já estão marcados. No próximo dia 29 de agosto, está previsto que mais oito acusados venham a julgamento. Já em 12 de setembro, serão mais oito. Os demais réus aguardam que recursos em tribunais superiores sejam apreciados. “Caso sejam concluídos em tempo hábil e mantido o entendimento, o número de réus aptos poderá aumentar”, informou o TJCE.
Crimes ocorridos dias antes da matança concorreram para que 11 pessoas fossem mortas na madrugada de 12 de novembro de 2015
25 de outubro de 2015 — Curió
Por volta das 22 horas, o adolescente Francisco de Assis Moura de Oliveira Filho, 16 anos, conhecido como Neném, é morto a tiros e uma outra pessoa é baleada. Conforme investigação, os autores do crime foram o soldado Marcílio Costa Andrade e o namorado de sua sobrinha, Giovanni Soares dos Santos.
O episódio teria ocorrido após uma discussão banal entre a vítima sobrevivente e uma familiar de Marcílio. Neném foi morto por equívoco, diz a investigação, já que o alvo seria o outro homem. Marcílio e Giovanni foram pronunciados pelo crime, mas recorreram da decisão e aguardam julgamento.
29 de outubro de 2015 — Curió
Após a morte de Neném, as famílias de Marcílio e Giovanni se mudam do bairro por medo de retaliação, já que Neném seria integrante da quadrilha que comandava o tráfico de drogas no bairro. O fato indignou vários PMs, que acreditavam que o soldado havia sido expulso por criminosos por causa de sua profissão. Na noite do 29, militares encapuzados ajudam na mudança da família de Marcílio
30 de outubro de 2015 — Curió
Durante a madrugada, o pai de Neném, Francisco de Assis Moura de Oliveira, é morto a tiros. A vítima era cadeirante. Até hoje, o crime não foi elucidado, mas moradores que ligaram para a Polícia pedindo socorro afirmaram que os assassinos eram PMs. Horas antes, uma outra ligação para Ciops relata que policiais à paisana e de balaclava estavam “aterrorizando” os moradores do bairro.
11 de novembro, por volta das 21h30min — Lagoa Redonda
O soldado Valterberg Chaves Serpa é morto a tiros em uma tentativa de assalto. Ele jogava futebol quando tentou impedir que três homens assaltassem a sua esposa. Até hoje, nenhum suspeito do latrocínio foi identificado e o inquérito que investiga o caso foi arquivado.
Após a morte de Serpa, policiais militares de folga combinaram, por meio das redes sociais, reunião em base do programa "Crack, é Possível Vencer" para auxiliar as buscas por suspeitos do crime.
11 de novembro, por volta das 23h30min — Lagoa Redonda
Na rua Raquel Florêncio, a primeira vítima da chacina. Um homem que havia fugido da clínica de recuperação em que era atendido é surpreendido por homens em carros particulares, que passam a efetuar disparos contra ele. A vítima, porém, foi socorrida e sobreviveu.
11 de novembro, por volta das 23h30min — Lagoa Redonda
Um jovem apontado por um informante da PM como alguém que sabe do paradeiro de dois traficantes da região é abordado por policiais do Serviço Reservado, que estavam encapuzados. Ele fica cerca de quatro horas sob poder dos policiais, "submetido a intenso sofrimento mental", conforme o Ministério Público.
O jovem chegou a ser colocado em um carro e obrigado a ligar para pessoas para que pudesse obter pistas de suspeitos de matar o soldado Serpa. Sem sucesso. Já quando os PMs levavam-no para casa, eles passaram pelo local onde uma das vítimas foi morta. "Tá vendo o que acontece com quem fica na rua fora de hora?", disse um dos militares.
12 de novembro, por volta das 0h26min — Lagoa Redonda
Homens encapuzados em sete veículos abordam cinco rapazes e uma moça que estavam em uma calçada da rua Lucimar de Oliveira. Eles ordenaram que as vítimas ficassem de joelhos, virados para a parede e, em seguida, atiraram contra eles. Quatro jovens foram mortos: Antônio Alisson Inácio Cardoso, Jardel Lima dos Santos, Pedro Alcântara Barroso do Nascimento Filho e Alef Souza Cavalcante. O quinto rapaz é baleado, mas sobrevive, enquanto a moça conseguiu fugir.
12 de novembro, por volta das 0h44min — Lagoa Redonda
O pai de uma das vítimas da chacina na rua Lucimar de Oliveira socorre os jovens na própria picape, acompanhado de um vizinho. Na tentativa de socorro, os homens se depararam com encapuzados. Temendo que eles tenham retornado para “terminar o que tinha começado”, o homem que acompanhava o pai de uma das vítimas pula da carroceria do veículo e corre em direção a uma churrascaria fechada.
Ele é perseguido e alcançado por oito homens encapuzados, que passam a espancá-lo e forçá-lo a identificar traficantes que atuavam no bairro. A vítima consegue fugir, mas é, novamente, alcançada, levando um tiro na perna. Ele sobreviveu.
12 de novembro, por volta da 1 hora — José de Alencar
Homens encapuzados passaram a invadir casas da rua Elza Leite de Albuquerque, no conjunto São Miguel, dizendo estarem atrás de um traficante. Em uma das residências, eles atiram na perna de um jovem, que sobrevive.
Em outro ponto da rua, os homens abordam dois jovens que estavam sentados numa calçada: Marcelo da Silva Mendes e Patrício João Pinho Leite. Eles são espancados e mortos a tiros. Um dos assassinos usava colete balístico com a inscrição Polícia Militar.
12 de novembro, por volta da 1h06min — Lagoa Redonda
Na avenida Professor José Arthur de Carvalho, Renayson Girão da Silva é retirado do ônibus onde estava ao lado da namorada por homens encapuzados, que o matam.
12 de novembro, por volta da 1h43min — José de Alencar
Na mesma rua onde Marcelo e Patrício foram mortos, homens encapuzados atiram e matam Valmir Ferreira da Conceição, que havia ido a um comércio comprar cigarros. Ele era tio de um homem apontado como traficante da região. O dono do estabelecimento, Francisco Elenildo Pereira Chagas, também foi morto.
Em uma casa em frente ao comércio, os criminosos invadem uma casa e matam Jandson Alexandre dos Santos, que estava deitado na companhia de uma criança de seis anos.
12 de novembro, por volta da 1h47min — Barroso
José Gilvan Pinto Barbosa e um amigo conversavam em uma esquina quando foram atingidos por disparos. Os autores do crime também estavam encapuzados e trafegavam em dois veículos. Ambos são socorridos, mas Gilvan morre dois dias depois.
22 de novembro, por volta das 21 horas — Curió
Mesmo após a chacina, PMs continuaram a buscar suspeitos de matar o soldado Serpa de forma clandestina. Um jovem de 22 anos, parente de Valmir, foi abordado por PMs quando estava em casa e conduzido às proximidades de uma horta. Os homens disseram para ele não reagir, caso contrário, iriam matá-lo. "A gente já matou um bocado aqui, um ou dois não faz diferença não”, teria dito um deles.
Na horta, o jovem passou a ser espancado para que dissesse o paradeiro de um traficante. Após a tortura, os PMs deram a ele uma pá e mandaram que ele cavasse a própria cova. A vítima, porém, não foi morta; um dos PMs atendeu uma ligação do traficante que procuravam em que este dizia que a população havia filmado os PMs e queimado um ônibus. Eles, então, desistiram do assassinato.