O processo de dar à luz já passou por diversas evoluções durante a história. Antes da medicalização e da chegada dos hospitais a comunidades de difícil acesso, o nascimento dos bebês era realizado pelas mãos de mulheres que, a partir da prática e do conhecimento ancestral, auxiliavam as gestantes durante e depois do parto.
O trabalho das parteiras tradicionais resiste e, apesar da queda nos últimos três anos, ainda tem presença demarcada no Interior do Ceará. De acordo com a Secretaria Estadual de Saúde (Sesa), 135 nascidos tiveram parto assistido por uma parteira no ano passado. Em 2021, foram 229 e, em 2020, esse registro chegou a 269.
Parteira tradicional há mais de dez anos e residente de Juazeiro do Norte, no Cariri Cearense, Samara Simões, de 38 anos, atua na região no espaço Roda Semear — onde também promove, junto com o marido, aulas de yoga e capoeira — e já realizou mais de 100 partos. Samara conta que, apesar de não ter outras parteiras na família, viu o ofício chegar como um “chamado” que causou uma reviravolta na vida dela.
Durante a época em que morou em Pernambuco, Samara, que tem formação em Teatro e, inicialmente, pensava em seguir a carreira artística, teve contato com outras duas parteiras tradicionais, que repassaram todo o conhecimento que envolve o partejar.
“Parteiras tradicionais não decidem se tornar parteiras. A gente nasce parteira e, em algum momento da vida, recebe o chamado e vai compreendendo que a gente nasceu parteira [...] Ser parteira não é só aprender tecnicamente a segurar o bebê e a proteger a mãe nesse momento incrível, mas aprender muitas coisas sobre a vida”, disse.
Para muitos, o partejar é considerado um conhecimento geracional, passado entre as mulheres da família. Por outro lado, Samara aponta que essa tradição nem sempre é algo transferido entre gerações e que muitas parteiras se descobrem de forma independente.
Outro ponto levantado por ela é o fato de que realizar um parto não exige uma “fórmula” única. Dentre os conhecimentos utilizados durante o processo, ela destaca que há saberes intuitivos e diversificados, especialmente pelo fato de as parteiras estarem inseridas em diversos contextos familiares e culturais.
“Observar a família para além do fisiológico, compreender de forma mais profunda os sinais do parto, utilizar as plantas medicinais quando necessário durante a gestação e o pós-parto, trabalhar com terapias de curas naturais e tradicionais e a reza, independente da religião, porque atendemos famílias de todas as crenças, são saberes tradicionais e ancestrais”, cita.
Samara explica que encontros entre parteiras tradicionais são comuns, como os realizados pela organização Cais do Parto, entidade pernambucana que oferece apoio a parteiras e dissemina culturas e tradições relacionadas ao parto.
“A escola serve para nos orientar e direcionar, serve como um despertar para a cura de vários aspectos do feminino. Não seria necessariamente uma formação, eu vejo como uma guiança nessa caminhada do partejar.”
Além dos encontros, há vários coletivos de parteiras espalhados pelo Brasil. O coletivo cearense Ao Sagrado Nascimento, por exemplo, fundado por Thatiane Terra, reúne mães, aprendizes de parteiras e outras profissionais do Estado com o objetivo de criar um espaço de compartilhamento de saberes.
Aos 43 anos e mãe de cinco filhos que nasceram pelas mãos de parteiras tradicionais, Thatiane relata que iniciou no trabalho após auxiliar o parto de uma vizinha. Ela conta que também adquiriu o conhecimento a partir do contato e da troca de experiências com outras parteiras.
“Eu saí conhecendo parteiras no Brasil. Parteiras com quem eu aprendi, com quem eu me formei, com as quais eu acompanhei muitos partos, grandes aprendizados e profundas relações. São mulheres que mexeram comigo, reviraram por dentro e me ajudaram a me conhecer como mulher [...] Esperei o momento certo. Compreendendo que esse era um caminho que não necessitava de pressa”, relembrou.
Nos partos, Thatiane atua junto a uma equipe composta por uma aprendiz de parteira e uma doula, profissional que oferece auxílio emocional para a gestante. O trabalho começa antes mesmo do parto em si, e, durante todo o período da gravidez, a parteira realiza um acompanhamento com a futura mãe.
Para ela, o pré-natal médico hospitalar e a transparência com a gestante, principalmente em casos de emergência, são indispensáveis.
“Em possíveis situações emergenciais, a gente precisa contar com o hospital. Em casa, a gente tem um limite mais reduzido de atuação em termos de emergência. É realmente uma forma de nascer muito segura, porém eu observo, como parteira, todas as nuances e os cuidados que a mulher precisa em uma necessidade de emergência.”
Thatiane analisa que o trabalho da parteira vai além dos limites do interior do Estado e aponta que as parteiras tradicionais nunca vão deixar de existir.
“Essa visão de que o trabalho da parteira é realizado apenas no Interior já é muito antiga. Graças à sabedoria ancestral, as parteiras nunca vão morrer e elas nunca estão limitadas a um espaço. A maneira como a gente escolhe nascer é única e é muito visceral. Então, nós estamos em toda parte, somos parteiras tradicionais, estamos vivas e nosso ofício permanecerá vivo”, considerou.
Mesmo com a importância de um trabalho que percorre décadas, Samara e Thatiane apontam o preconceito com as parteiras tradicionais. O serviço é reconhecido pelo Ministério da Saúde e pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Em 2011, o trabalho das parteiras foi incluído na Rede Cegonha — programa de assistência a gestantes que foi retomado no governo Lula — como elemento de saúde comunitária.
Porém, muitas pessoas ainda não têm noção sobre o que é o trabalho da parteira tradicional e carregam estereótipos relacionados à profissão.
De acordo com Samara Simões, as mulheres que fazem parte do Movimento de Parteiras Tradicionais do Brasil realizam encontros periódicos em que discutem situações desafiadoras que vivenciaram ou ainda vivenciam dentro do sistema.
Uma das principais demandas é o maior acesso das parteiras às Declarações do Nascido Vivo (DNV). O documento é emitido após cada nascimento de um bebê e é utilizado para que a criança seja registrada em cartório. A declaração, que deve ser preenchida com informações sobre o parto, é fornecida pelas Secretarias Municipais de Saúde (SMS) às instituições que realizam partos.
No caso de partos realizados em casa, o nascido vivo também tem direito à DNV, e as parteiras devem se cadastrar na SMS. No entanto, parte das mulheres que realizam o parto domiciliar apontam que já tiveram o acesso à declaração negado.
“A maioria das parteiras já viveu isso, e algumas famílias, consequentemente, têm dificuldade em fazer o registro do bebê. A gente tem buscado, cada uma em sua região, se vincular à Secretaria de Saúde de cada município, para que conheçam o nosso trabalho e tenham a confiança de emitir a DNV ou autorizar que a gente preencha. Essa é uma demanda que ocorre no Brasil inteiro”, enfatizou.
Thatiane, que mora no município de São Gonçalo do Amarante, localizado na Região Metropolitana de Fortaleza, conta que garantiu o registro como parteira tradicional pelo Ministério da Saúde a partir do cadastro, porém aponta que o preenchimento do documento em algumas cidades ainda é bastante limitado.
“Quando nascidos em casa, com parteiras, algumas cidades ainda dificultam essa entrega, e é muito importante que nós, parteiras tradicionais, possamos preencher essa DNV, porque fomos nós que assistimos o parto. Então, nós sabemos dos dados daquele bebê e somos responsáveis por aquele nascimento.”
Em 2021, o Ministério emitiu uma nota técnica desaconselhando o parto domiciliar e considerando o hospital como o local com maior segurança para a realização do procedimento. Na época, o comunicado repercutiu, e uma carta de repúdio foi feita por parte dos profissionais da área.
A carta concordou com a pasta ao apontar que “a escolha do local do parto deve ser balizada pelo protagonismo da mulher ou pessoa gestante”, porém apontou que o Ministério da Saúde falhou ao assumir um “posicionamento binário” e não apresentar diferentes alternativas, como as casas de parto vinculadas ao SUS.
A nota técnica foi divulgada durante a administração do ex-presidente Jair Bolsonaro. O POVO entrou em contato com a atual gestão da pasta e aguarda resposta sobre o assunto.
A busca por uma gestação assistida por uma parteira também é registrado nas grandes cidades. Atualmente, muitas pessoas demandam os serviços de parteiras urbanas, chamadas de enfermeiras obstetras ou obstetrizes, para um parto domiciliar natural e humanizado.
A enfermeira obstetra e consultora de amamentação Nirla Montezuma, de 46 anos, considera que um parto humanizado tem três pilares: evidências científicas, protagonismo da mulher e trabalho interdisciplinar.
“Eu sempre falo que o parto humanizado requer respeito. Você pode parir em qualquer canto, contanto que tenha esses pilares. Não precisa ser um parto que tenha flores ou uma banheira. Se tiver, isso ajuda também no conforto da gestante, mas precisa estar nesses três pilares”, afirmou.
A enfermeira, que trabalha de maneira autônoma há oito anos, relatou que, na época em que atuava em um hospital, observou muitas mulheres chegando cedo para parir e sentindo muitas dores. Isso causava ansiedade e dúvidas em um ambiente que, para muitas pessoas, é sinônimo de medo.
“Nessas idas ao hospital, a mulher não estava em trabalho de parto, voltava, e isso gerava ansiedade na mulher, na família e até na equipe que estava ali de plantão. Às vezes, internavam essa mulher precocemente, e as evidências estão aí para dizer que quanto mais cedo a gente chega ao hospital, mais risco de intervenção a gente vai ter nesse parto”, lembrou.
O primeiro passo para um parto humanizado é a oferta de informações para a gestante. O trabalho da enfermeira, que envolve obstetras, fisioterapeutas, doulas, acupunturistas e até fotógrafos de parto, é realizado desde o início da gestação, elevando o protagonismo da mulher, e segue até o pós-parto.
“A gente faz consultas, e eu explico todo o processo do trabalho de parto, sobre o que é uma contração, quais são as fases, o que você vai sentir em cada uma. Nós acompanhamos durante o parto, que começa na casa da mulher, e encaminhamos para o hospital a partir da fase ativa do trabalho de parto. Eu fico com essa gestante até o pós-parto imediato para ajudar no processo de contato pele a pele e na amamentação”, detalha.
A especialista afirma que muitas parturientes estão procurando o serviço, principalmente com o fácil acesso de informações e a troca de experiências entre outras mulheres na internet. A falta de conhecimento, o medo da dor e a violência obstétrica são alguns dos fatores que levam a grande maioria das gestantes a buscar um parto mais humanizado.
“A procura vem aumentando por conta dos benefícios. O que a gente mais ouvia dessas mulheres eram as violências que aconteciam, e aí o medo de parir, o medo da dor. A dor faz parte do processo, mas o sofrimento já é baseado em uma violência que existia e que ainda existe. Mais pessoas estão procurando, porque sabem dos benefícios, tanto para ela quanto para o bebê.”
A experiência do parto em casa foi o que levou a fotógrafa Roberta Martins a trabalhar realizando registros de nascimentos. A profissional relatou que, apesar de não ter planejado — o parto evoluiu muito rápido —, a experiência de parir em casa foi transformadora.
“Ter tido um parto com assistência respeitosa, respeitando a minha autonomia e com empatia, foi uma experiência muito forte para mim. Foi o que eu busquei durante toda a gestação.”
Roberta conta que, após a experiência, decidiu proporcionar o mesmo sentimento a outras mulheres a partir da fotografia. Há quase dez anos, a profissional produz imagens e filmes de partos e foi uma das primeiras a iniciar na área de fotografia de parto documental em Fortaleza.
A fotógrafa fica de plantão para os partos, mesmo que seja uma cesárea agendada, e acompanha os nascimentos, que têm nuances e diferenças entre si. Ela cita que algumas mulheres ficam de olhos fechados e outras vão para a chamada “Partolândia” e entram em um transe.
De acordo com a fotógrafa, são essas especificidades que compõem a riqueza do registro fotográfico, que oferece a possibilidade de rememorar o parto diversas vezes.
“O bebê vai poder saber como é que ele foi recebido, a mulher vai poder rever algumas cenas que talvez ela nem tenha percebido na hora, o acompanhante ou a acompanhante também vai poder revisitar essas imagens. A nossa memória é muito falha, e ter isso em foto e em vídeo é uma herança de família. É uma recordação que fica para sempre e ela pode ser sempre visitada e revisitada”, disse.
Atrelada ao trabalho da parteira tradicional ou da enfermeira obstetra, a doula tem papel singular no parto. A função da profissional envolve o apoio emocional para a gestante durante aquele momento que exige grande esforço.
A especialista, que não tem responsabilidade técnica durante o parto, atua no acolhimento e na resolução de possíveis problemas. A psicóloga Krys Rodrigues, que atua como doula há dez anos, explica que a doulagem envolve o apoio físico, a oferta de métodos não farmacológicos para alívio da dor — como massagens, aromaterapia e compressas — e o suporte emocional.
“O pré-natal é uma vez por mês, e a doula é todo dia. Eu falo muito que 70% do parto é a cabeça e como a gente se prepara para vivenciar esse momento que tem muita coisa envolvida, como dor, cansaço e pressão familiar. Então, a preparação emocional, tanto antes quanto durante o parto, é fundamental, incluindo a preparação do acompanhante para vivenciar esse processo”, destacou.
O serviço é cada vez mais demandado por mulheres que desejam ter uma experiência positiva no parto, seja domiciliar ou em hospitais. Krys relata um caso de uma gestante que estava sendo mãe pela segunda vez, mas que contratou os serviços da doula porque não conseguiu aproveitar a experiência do parto.
“Um casal veio me procurar porque no primeiro parto ela teve um parto normal e foi bem rápido, mas ela disse que, desta vez, quer uma doula porque ela quer vivenciar esse parto com o esposo de uma forma mais leve. Tem essa parcela de mulheres que já está procurando a doula para que seja esse ponto de apoio e para que vivenciem o parto da forma mais positiva possível”, conta.
Apesar das distintas formações e das diferentes atuações durante o parto, Samara, Thatiane, Nirla, Roberta e Krys consideram os trabalhos que desenvolvem como uma missão e buscam, acima de tudo, promover uma experiência positiva para as mulheres.
A possibilidade de um parto natural sem violência obstétrica e com pessoas que promovem a autonomia da mulher são alguns dos principais motivos pelos quais o trabalho das parteiras resiste.