Fotos de pessoas negras nas paredes da escola, livros infantis contando histórias sobre cabelos crespos, bonecas de vários tons de pele. O ambiente escolar do Centro de Educação Infantil Ana Amélia Bezerra de Menezes, no bairro Itaperi, em Fortaleza, anuncia um espaço em transformação. Ao focar na educação antirracista, a escola procura acolher e exaltar características, culturas e a história da população afro-brasileira de forma integral.
O trabalho começou a se intensificar no início do ano letivo de 2023. Patrícia Serra, coordenadora da creche, explica que uma consulta entre os educadores da rede municipal da Capital foi feita para escolher o tema do ano do projeto Protagonismo Infantil, resultando na definição das relações étnico-raciais como temática a ser trabalhada.
Executado desde 2017, o projeto tem como objetivo colocar as crianças no centro do planejamento escolar. Com o tema de 2023, a iniciativa buscou alinhar o discurso de inclusão e combate aos preconceitos com a prática.
Assim, os alunos de todas as escolas passaram a ter experiências para ampliar o entendimento sobre as diferentes etnias. “A educação infantil está muito movimentada para fazer essa cultura antirracista. Nos seis primeiros anos de vida, a gente precisa abordar isso”, afirma Patrícia.
A necessidade de assegurar que as crianças aprendam a reconhecer, valorizar e respeitar as culturas africanas e afro-brasileiras já é prevista nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, em vigor desde 2009. O documento também fala que as propostas pedagógicas das instituições devem garantir o combate ao racismo e à discriminação.
A Proposta Curricular para essa faixa etária em Fortaleza é outro dispositivo que expressa a “urgência de romper com modelos discriminatórios de educação”, como consta no texto. Para isso, o primeiro passo foi formar os educadores da rede para ensiná-los a tratar do assunto com os alunos. Seminários, formações permanentes, ciclos de diálogos e intercâmbios entre equipes foram voltados para o tema.
Além disso, momentos do dia a dia dentro da escola precisaram ser discutidos. Patrícia, que é negra e tem o cabelo cacheado, conta da ocasião em que foi de sala em sala explicando às professoras como melhor cuidar do cabelo das crianças pretas, com pentes e sprays específicos.
“Muito da educação infantil é educar e cuidar, e isso precisa ter esse olhar amplo. Nessas visitas, falo sobre como pentear valorizando, como tem beleza aqui. Começo a sensibilizar as professoras de forma tranquila, não chamando atenção, mas mostrando a elas como aquilo é importante”, diz.
“O currículo nessa etapa da educação infantil reverbera na vida das crianças. Então, essa temática não deve ser trabalhada de forma pontual, em função de alguma data, mas sim em função da construção de uma sociedade mais inclusiva”, diz Simone Calandrine, coordenadora da educação infantil da rede de Fortaleza.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento referência para a construção dos currículos do nível básico, estabelece campos de experiência a serem trabalhados na educação infantil. Um deles, chamado “O eu, o outro e o nós”, trata de práticas para estimular a convivência social, o sentimento de pertencimento e o conhecimento de si mesmo.
Por isso, incluir o antirracismo na primeira infância faz tanta diferença, segundo Simone. “A gente está falando de uma sociedade que tem uma estrutura voltada para a branquitude, que tem um racismo estrutural. Esse não reconhecimento repercute em um prejuízo imenso na primeira infância”, afirma Simone.
Calandrine explica que a falta de afeto, escuta, cuidado ou o sofrimento de outros tipos de violências relacionadas ao racismo podem impactar de forma permanente o desenvolvimento e a aprendizagem.
Tratar o racismo na escola com seriedade também envolve não ignorar quando crianças brancas reproduzem o preconceito. “A gente sabe que a criança já vem com esse sentimento até sem perceber. O melhor a fazer é conversar, olhar no olho e explicar, ouvir o que a criança tem a dizer e questionar com ela, chamar para essa tomada de consciência”, descreve Patrícia.
Documentos de referência para a educação antirracista.
2003 - Sanção da lei nº 10.639, que obriga as redes de ensino básico a incluírem a história e cultura afro-brasileira no currículo. A lei também inclui o dia 20 de novembro, dia nacional da Consciência Negra, no calendário escolar.
2004 - Publicação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, elaboradas pelo Conselho Nacional de Educação.
2008 - Inclusão do ensino sobre a cultura e história dos povos indígenas na lei nº 10.639/2003.
2009 - Publicação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Determinou que as ações pedagógicas cotidianas das crianças combatam o racismo e a discriminação.
2017 - Implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Em conformidade com a legislação já em vigor, reitera a necessidade de ensinar sobre a história do povo afro-brasileiro e indígena.
Primeira Infância Antirracista
Lançada em maio deste ano, a Estratégia - Primeira Infância Antirracista (PIA), de autoria do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), é uma das alternativas que têm surgido para o combate ao racismo dentro e fora das escolas. A medida busca levar as discussões sobre combate ao racismo até instituições da saúde, educação e assistência social. O objetivo dessa iniciativa é capacitar esses profissionais do cotidiano para o atendimento a pessoas pretas e indígenas.
O projeto vem sendo realizado em seis capitais brasileiras, incluindo Fortaleza. Na terra do sol, o objetivo é fomentar esse debate não só na primeira infância, mas estendê-lo para as demais fases da vida. “A gente está começando pela educação infantil, mas precisa ter a educação antirracista em toda a educação básica. Acho que o principal desafio é estender esse conceito de educação antirracista que hoje nós temos na primeira infância para toda a educação básica, inclusive na educação superior, sobretudo nos cursos de formação de professores nas universidades”, avalia o chefe do gabinete do Unicef em Fortaleza, Rui Aguiar.