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Aposta no sonho e nas oportunidades como transformar a favela em céu
Reportagem

Aposta no sonho e nas oportunidades como transformar a favela em céu

|Desenvolver|Na favela do Inferninho, o Instituto Pensando Bem transformou um beco abandonado no céu. O espaço é centro de formação, além de oferecer serviços gratuitos de lazer e saúde mental
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O BECO Céu (Inferninho), no Vila Velha, ganhou novas cores com o desenvolvimento de projetos focados nas necessidades da comunidade 
 (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal O BECO Céu (Inferninho), no Vila Velha, ganhou novas cores com o desenvolvimento de projetos focados nas necessidades da comunidade

 

Entrar no Beco Céu é navegar por uma explosão de cores. Laranja, azul, amarelo e rosa espalhando-se pelos muros, do chão aos tetos, compondo artes e textos que exemplificam muito bem os sonhos da favela do Inferninho, no bairro Vila Velha de Fortaleza. O contraste dos nomes é proposital: o beco virou uma espécie de paraíso dentro do inferno que Fortaleza inventou e insiste em estigmatizar.

A favela não é sinônimo de pobreza, ouvi o líder social Rutênio Florencio explicar dentro da sala refrigerada do Instituto Pensando Bem (IPB), ONG da qual é fundador e CEO. “A favela é um lugar onde tem pobreza. E a pobreza rouba o sonho das pessoas.”

 

 

Ao caminhar pelo beco colorido, com as crianças andando de bicicleta e correndo empunhando espadas de brinquedo, é até estranho imaginar a ausência de sonhos na comunidade. Mas é que o cenário não foi sempre assim. Há quatro anos, o Beco Céu era só mais um beco abandonado, sujo e perigoso. Onde hoje está o piso intertravado pintado, passava um canal que enchia nas chuvas intensas; em 2024, o IPB conseguiu mobilizar a prefeitura de Fortaleza para realizar a obra de drenagem do canal.

“Tinha uma horta, mas também tinha muito lixo, era um canal aberto. Era peixe morto, se morria um animal, jogava nos matos… Quando chovia, subia aquele lixeiro e as caixas enchiam d’água”, lembra Maria de Fátima Costa, de 67 anos. Ela se mudou para o beco em 1990 e, desde então, teve a casa inundada todas as vezes que chovia.

Dona Fátima, 67, é uma das moradoras do Beco Céu.(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Dona Fátima, 67, é uma das moradoras do Beco Céu.

E não era pouca água: para provar, ela levantou-se do sofá, caminhou até a porta e colocou a mão na altura do interruptor da sala. “Minha filha, sem mentira nenhuma, (a água subiu até) aqui.” A inundação arrastou os móveis, incluindo a geladeira. Com a mão firme marcando a altura da água no pescoço, dona Fátima narra o sufoco de sair de casa com os eletrodomésticos barrando o caminho.

Foi há sete anos, em 2017. A casa rachou e dona Fátima precisou morar de aluguel social por cinco anos e voltou para o beco em 2022. Em fevereiro de 2024, quando Fortaleza registrou uma chuva de 215 mm no posto Caça e Pesca (a segunda maior em 50 anos), a água voltou a entrar no lar da aposentada — dessa vez, pifou outra geladeira que já estava velha.

 

 

Outras famílias da Vila Velha, por outro lado, foram mais afetadas pela intensidade das chuvas de cinco meses atrás. O senhor José Maria de Matos, 61, só teve a possibilidade de começar a reconstruir a casa desabada em julho, enquanto outras duas famílias que tiveram as casas rachadas e ameaçadas pela possível queda de uma fábrica abandonada seguem morando de aluguel social em outro endereço do bairro.

Desde então, a drenagem do espaço avançou muito. “Isso influencia no desenvolvimento da comunidade”, reforça Rutênio. O buraco aberto da época do Carnaval está fechado e decorado com amarelinhas, bem ocupado pelas crianças agitadas pela tarde ensolarada — a maioria, diga-se, netos de dona Fátima.

“Eu tive sete filhas e seis homens”, riu a senhora. “Ave Maria!”, não escondi a surpresa. “Quando foi que a senhora teve tanto menino?”, perguntei. “Eu comecei a ter com 19 anos, até os 36 anos. Com 36 já tava velha (risos).” Nem me atrevi a perguntar a quantidade de netos; fato é que, dos 13 filhos, muitos foram beneficiados pelo Pensando Bem no processo de empregabilidade.

“Nós temos a meta de garantir plena renda para 20 pessoas por mês”, explica Rutênio. Em oito meses, diz o fundador, o Pensando Bem garantiu a empregabilidade de 240 pessoas. No entanto, eles perceberam que a carteira assinada é apenas uma das várias maneiras de promover desenvolvimento econômico na favela. O objetivo, então, é estimular a renda das famílias, viabilizando oficinas e cursos focados no empreendedorismo.

 

 

Para isso, o antigo Beco do Canal (como dona Fátima diz que era conhecido o local) foi transformado em uma escola, o Beco Céu, composta por salas com computadores, para aulas de informática; salas para artes marciais, balé e música; salas com biblioteca, para atividades infantis e para atendimento psicológico… Toda uma estrutura pensada nas demandas de lazer, cultura e educação da favela.

De uma das salas do Beco Céu, onde jovens adultos participam do projeto Primeiro Passo, do governo do Ceará, chamamos João Victor Fernandes Sousa, 22 anos, para conversar. Ele conseguiu o primeiro emprego em uma empresa alimentícia e, dentro do Primeiro Passo, está aprendendo sobre como se portar no ambiente de trabalho e a entender as estruturas da empresa.

“É meu primeiro emprego de carteira assinada, então é um novo mundo que eu tô enxergando através deles”, comemora o rapaz. “Tem muita pessoa que enxerga o curso como só mais uma aula, só que não é assim. É para você ter um degrau a mais, você consegue subir com mais facilidade, com o apoio de profissionais, com o apoio dos colegas.”

João Victor, 22, é um dos alunos do programa Primeiro Passo.(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal João Victor, 22, é um dos alunos do programa Primeiro Passo.

A conversa continuou enquanto fotografamos João em frente ao graffiti de um menino ciclista, local escolhido por ele por já ter trabalhado com o conserto de bicicletas. Sentado no banco rosa, ele contou do desejo de ser arquiteto: “Eu tenho esse sonho de ser arquiteto e ajudar a Pensando Bem. Quero crescer profissionalmente aqui dentro como designer também. Eu gosto de desenhar, e às vezes eu ajudo minha namorada, que trabalha aqui no instituto, então também me sinto parte disso, quero poder crescer junto.”

Entre um clique e outro, João lembra de um detalhe. “Ah, esqueci de falar uma coisa que é bem importante.” Puxo o celular novamente, aperto rec no aplicativo do gravador. “É a questão do apoio psicológico.”

Uma das abordagens do Pensando Bem é o atendimento psicológico individualizado. É muito difícil superar os desafios impostos pela pobreza — desde os conflitos territoriais à falta de acesso a políticas públicas — sem voltar a atenção para a saúde mental. Naquele mesmo dia, 16 de julho, João finalizou as consultas psicológicas pelo projeto. “A minha cabeça estava muito desorganizada… Eu digo assim, eu tinha um pouco de preconceito (com a terapia). Às vezes, a pessoa acha que não precisa; eu vi que eu precisava.”

“Eu tive esse apoio psicológico e foi muito bom para mim, eu consegui me livrar de pesos que eu, mesmo jovem, já vinha carregando. Trabalhar seu emocional é muito importante também porque às vezes a pessoa cresce sem um apoio. E o apoio profissional ajuda muito a desenvolver o emocional e o pessoal, até futuramente.”

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