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Não é só terapia: Brasil pós-pandemia enfrenta dilemas na saúde mental
Reportagem Seriada

Não é só terapia: Brasil pós-pandemia enfrenta dilemas na saúde mental

Enquanto autodiagnósticos e automedicação preocupam especialistas, País vive aumento de transtornos cujos tratamentos são inacessíveis para parte da população, o que fragiliza bem-estar mental de grupos já vulneráveis. Mulheres são as mais atingidas por problemas com saúde mental, terceira maior motivação para afastamento do trabalho no Brasil
Episódio 1

Não é só terapia: Brasil pós-pandemia enfrenta dilemas na saúde mental

Enquanto autodiagnósticos e automedicação preocupam especialistas, País vive aumento de transtornos cujos tratamentos são inacessíveis para parte da população, o que fragiliza bem-estar mental de grupos já vulneráveis. Mulheres são as mais atingidas por problemas com saúde mental, terceira maior motivação para afastamento do trabalho no Brasil
Episódio 1
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"Essa série de reportagens venceu o Prêmio Gandhi de Comunicação 2023"

 

Um grande cachorro preto que lhe acompanha em todo lugar, sem te deixar dormir, comer bem ou se concentrar; que afeta a capacidade de sentir e que enche a cabeça de pensamentos negativos e repetitivos. Seu nome? “Depressão”.

A metáfora, cunhada pelo escritor inglês Samuel Johnson no século 18, não é nenhum insulto ao famoso melhor amigo do homem — ela foi utilizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em um vídeo para descrever os efeitos do transtorno mental mais comum em todo o mundo.

Projeções da OMS estimam que em 2030, entre todas as doenças, a depressão será a mais frequente. Isso porque, embora existam tratamentos, menos da metade dos afetados por ela consegue buscar ou receber qualquer tipo de ajuda.

“Cair se tornou mais fácil que levantar novamente”, diz o protagonista da animação, atingido pelo distúrbio que afeta o cotidiano, o trabalho e as relações pessoais de mais de 350 milhões de pessoas de todas as idades ao redor do planeta.

À depressão, unem-se outros transtornos que apresentaram picos de diagnóstico nos últimos anos durante o contexto da pandemia de Covid-19 — como ansiedade, Burnout, Borderline e Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC), ou condições relacionadas ao desenvolvimento do cérebro como Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e Transtorno do Espectro do Autismo (TEA).

Cerca de 10% da população mundial sofre com transtornos mentais, o que corresponde, aproximadamente, a 780 milhões de pessoas. Esses distúrbios representam quase um quarto do total das doenças na América Latina — região do continente em que o Brasil lidera o ranking da ansiedade, com quase 19 milhões de pessoas que vivem com essa condição.


No pós-pandemia, mais da metade da população brasileira relata ter diagnóstico de doença, e um em cada cinco brasileiros está depressivo. É o que revela um levantamento do Instituto Ipsos, que também detalha a discrepância entre homens e mulheres: enquanto 36% tem perfil masculino, 64% faz parte do público feminino.

A insônia, um dos distúrbios do sono que mais aparece como efeito secundário desses transtornos, é relatada por 35% dos brasileiros. Quando questionados sobre a frequência com que faziam acompanhamento, apenas 25% dos entrevistados disseram ver um especialista todo mês, enquanto 36% veem com um intervalo de três meses e 33% não relataram regularidade.

Para diagnósticos tipificados mais recentemente, a proporção de jovens dispara. No caso do déficit de atenção com hiperatividade, conhecido como TDAH, 67% tinham entre 18 e 34 anos, contra 12% da média nacional. Já o burnout, ou esgotamento profissional, foi relatado por 79% dos que tinham entre 18 e 34 anos, frente a 4% da média nacional.

Prevalência de transtornos mentais e neurológicos no Brasil em 2023


De acordo com o Ministério da Saúde, existem três tipos de tratamento para os transtornos de ansiedade: medicamentos (sempre com acompanhamento e receita médica); psicoterapia com psicólogo ou psiquiatra; e a combinação dos dois tratamentos.

Única opção de acesso a serviços de saúde para boa parcela dos brasileiros, o Sistema Único de Saúde (SUS) disponibiliza atendimento para pessoas em sofrimento psíquico por meio dos serviços da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) e recebe parte dessa crescente demanda.

Entre as unidades do sistema de saúde mental do SUS estão os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que contam com diferentes modalidades, como serviços infantis e específicos para o tratamento de usuários de álcool e drogas.

A psicóloga Rane Félix é coordenadora de Políticas em Saúde Mental, Álcool e outras Drogas da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa-CE)(Foto: Acervo pessoal/Rane Félix)
Foto: Acervo pessoal/Rane Félix A psicóloga Rane Félix é coordenadora de Políticas em Saúde Mental, Álcool e outras Drogas da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa-CE)

O cenário de piora na saúde mental dos cearenses preocupa a psicóloga Rane Félix, coordenadora de Políticas em Saúde Mental, Álcool e outras Drogas da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa-CE).

“Um dos motivos que nos levam a querer fortalecer a atenção primária é o fato de que existem muitas pessoas com quadros de ansiedade e depressão, que fazem uso abusivo de substâncias”, expõe.

“Depois da pandemia realmente houve um aumento na demanda por tratamento, a gente tem se preocupado muito. Nós tínhamos 140 equipes multiprofissionais, que são as primeiras que recebem essas pessoas na atenção primária, mas devido à demanda nós temos solicitado ao Ministério da Saúde o incremento para mais de 327, justamente pela necessidade de ampliar esse trabalho”, retrata.

O acréscimo de recursos representa mais possibilidades de ampliar equipes defasadas, criar outros serviços e assegurar toda uma capilaridade em pequenos hospitais, hospitais-escola e clínicas, relata a coordenadora.

A rede estadual, por meio de unidades como o Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto (HSM), cuida de transtornos mais graves e persistentes, a exemplo de pacientes com ideação suicida e casos de automutilação, por exemplo.

“Nossa luta é ampliar para garantir esse acesso maior, porque quanto mais a população acessa, mais ela tem possibilidade de cuidado. Além disso, ações que a gente pode desenvolver voltadas à formação dos profissionais”, assinala Félix, que menciona a importância da Política Estadual de Saúde Mental, implementada desde 2020 pela pasta.

A missão, frisa a psicóloga, é “tentar retirar as pessoas de hospitais psiquiátricos e de manicômicos, estimular mais ações de arte e cultura, fortalecer outras regiões que ainda não têm uma cobertura adequada com nosso apoio e atuar com públicos vulneráveis como os idosos e as crianças, que têm demandado cada vez mais esse cuidado para evitar sofrimento e adoecimento mental”.

HOSPITAL de Saúde Mental atende pacientes em situação de urgência(Foto: Diogo Camelo/ Especial para O POVO))
Foto: Diogo Camelo/ Especial para O POVO) HOSPITAL de Saúde Mental atende pacientes em situação de urgência

O diálogo é a melhor estratégia, não se trata só no campo da saúde e muito menos só no campo da medicalização, a pessoa precisa de outras coisas, precisa de acesso à arte, à cultura, ao lazer. Se ela mora no bairro Vila Velha, por exemplo, o que tem ali naquela comunidade, naquele território, que eu posso utilizar? Uma reunião comunitária, atividades na igreja, uma oficina”, exemplifica.

“A medicação sozinha não resolve, porque ela contribui para o processo de cuidado, mas o caminho terapêutico para uma pessoa que está em uma situação de sofrimento e adoecimento é muito mais intenso”, discorre.

“Ele vai desde propor que aquela pessoa faça uma caminhada, uma oficina de customização, que ela vá ao parque, se engaje em um grupo de dança, pintura, trabalho para geração de renda, que se vincule com o seu entorno, então é uma questão que não depende apenas de um tipo de ação. Chegar e pegar uma medicação é a parte fácil, a parte difícil é dar o seguimento a esse cuidado no território em que a pessoa mora”, pontua.

O processo de cuidado envolve um caminho coletivo para superar desigualdades que afetam o bem-estar mental dos brasileiros(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS O processo de cuidado envolve um caminho coletivo para superar desigualdades que afetam o bem-estar mental dos brasileiros

Em Fortaleza, os quadros de alteração de humor como ansiedade e depressão subiram em números visíveis por conta do confinamento, do isolamento social e do direcionamento às telas de celulares e computadores.

É o que enfatiza a médica Luciana Passos, coordenadora de Redes de Atenção Primária e Psicossocial da Secretaria Municipal da Saúde de Fortaleza (SMS): “a saúde mental na Capital tem sido um dos grandes focos da gestão em saúde, justamente na tentativa de melhorias dos serviços para suprir uma demanda que veio da pandemia”.

“O que nos faz ter de dar esse olhar especial para a saúde mental e permite visualizar a necessidade de ampliação da rede. A saúde mental faz parte de uma rede de atenção à saúde integrada com a atenção primária, que são os postos de saúde, porém o acesso a ela é porta aberta”, explica.

A médica Luciana Passos é coordenadora de Redes de Atenção Primária e Psicossocial da Secretaria Municipal da Saúde de Fortaleza (SMS)(Foto: Divulgação/SMS)
Foto: Divulgação/SMS A médica Luciana Passos é coordenadora de Redes de Atenção Primária e Psicossocial da Secretaria Municipal da Saúde de Fortaleza (SMS)

“A gente sabe que a saúde mental, nessa busca pelo serviço, sofre com os estigmas dos transtornos mentais, que ainda é muito intenso na nossa sociedade, o que faz com que essas buscam não sejam tão efetivas e as pessoas tenham esse sofrimento psíquico acentuado sem o suporte adequado”, reconhece.

A fim de evitar o uso exacerbado de medicamentos sujeitos a controle especial, Passos reforça que a avaliação por equipes multiprofissionais é fundamental: “são equipes compostas por médicos, clínicos, psicólogos, psiquiatras, todos voltados para auxiliar no enfrentamento a esse sofrimento”.

Segundo a médica, qualquer terapia deve ser contextualizada de acordo com a individualidade de cada paciente.

“Tem de haver uma avaliação adequada e uma abordagem direcionada de forma singular, para só então partir para diagnósticos pelos profissionais médicos, conduções adequadas com remédios ou outras terapias”, recomenda.

Passos orienta que “as pessoas com o desejo, com a necessidade de alguma abordagem nesses quadros podem procurar os Caps "A Rede de Atenção Psicossocial (Raps) de Fortaleza é composta por 24 equipamentos, sendo 16 centros de atenção psicossocial (Caps), cinco unidades de acolhimento para dependentes químicos e três residências terapêuticas. A saúde municipal também dispõe de uma rede de apoio à internação de urgência e estabilização na Santa Casa de Misericórdia com doze leitos para desintoxicação e na Sociedade de Assistência e Proteção à Infância de Fortaleza (Sopai), com 25 leitos infanto-juvenis, além de leitos contratualizados." e os postos de saúde para fazer essa integração”.

Atendimentos nos Caps de Fortaleza (2021-2023/até setembro)


Para o enfermeiro Sérgio Diógenes, coordenador do Caps AD de Aquiraz, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), “um bom processo adaptativo às demandas cotidianas advém da manutenção do cuidado em saúde mental”.

“Sempre deixamos essa parte da nossa vida para depois. Costumamos cuidar das situações urgentes como uma gripe, uma dor no joelho, mas negligenciamos nossa saúde mental. Desacelerar diante de tantas informações fluidas é essencial”, defende.

“Esse é um fenômeno mundial, a dificuldade está por toda parte, não somente em Aquiraz. Os serviços de saúde não conseguem acompanhar a velocidade do aumento da demanda em saúde mental. Estamos vivenciando uma epidemia de ansiedade, depressão, transtornos relacionados à adicção e vários outros”, complementa.

Os Caps são serviços de portas abertas - ou seja, devem acolher, sem agendamento, novos usuários(Foto: EVILÁZIO BEZERRA)
Foto: EVILÁZIO BEZERRA Os Caps são serviços de portas abertas - ou seja, devem acolher, sem agendamento, novos usuários

Na opinião de Diógenes, o que se enfrenta é uma “síndrome do lençol curto”: “Se puxamos para cima, descobrimos os pés, e se puxamos para baixo, não temos como agarrar o lençol com os braços”.

Dentre os fatores que contribuem com essa realidade, o psicólogo lista “a fragilidade dos arranjos e do suporte familiar, comunitário e social; o isolamento social; a falta de conhecimento sobre os sintomas das demandas psíquicas e dar-lhes a devida importância”.

Isabel Fonteles é terapeuta ocupacional e atua no Caps AD de Aquiraz, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF)(Foto: Acervo pessoal/Isabel Fonteles)
Foto: Acervo pessoal/Isabel Fonteles Isabel Fonteles é terapeuta ocupacional e atua no Caps AD de Aquiraz, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF)

Além desses, cita “os tabus que ainda permeiam a mentes de todas as gerações devido à ignorância sobre a temática e às vezes à dificuldade de acesso aos locais de atendimento especializados” como os principais.

A análise é acompanhada pela da terapeuta ocupacional Isabel Fonteles, que também auxilia os aquirazenses.

“A internet tem sido um divisor de águas na popularização do conhecimento sobre transtornos mentais, mas o conhecimento apropriado advém dos especialistas na área”, pondera.

Fonteles adiciona que “a cultura imediatista e fluida faz com que queiramos tudo rápido, de imediato. A evolução não dá saltos, é necessário investimento psíquico e de tempo na manutenção e melhora do estado mental”.

“Infelizmente há muita desistência do processo psicoterápico, pois é difícil encarar sua dor de frente, é mais fácil e mais cômodo tomar alguns comprimidos. Mas você não resolve o problema, apenas acalma os sintomas, a causa deles permanece embaixo de uma pedra que colocamos sobre o coração”, arremata.

“A pandemia trouxe como que uma autorização para as pessoas terem um pouco mais de liberdade de dizerem que não estão bem”, afirma a psiquiatra Alexandrina Meleiro.

Para Meleiro, “as doenças mentais estão em alta devido a fatores econômicos, sociais e, principalmente, um agravo após a pandemia: além do transtorno do estresse pós-traumático em função de perdas de familiares, perdas de trabalho e toda uma situação de incerteza que a Covid-19 trouxe a todos, houve muito aumento do abuso de substâncias, principalmente nos jovens, alcoolismo nos homens e nas mulheres”.

Como principais dilemas que a saúde mental dos brasileiros enfrenta hoje, a psiquiatra elenca “a insegurança do ponto de vista de governos, de política de saúde, política econômica e a instabilidade, de um certo modo, que todas as faixas de etárias estão passando”.

Principais dilemas para a saúde mental no Brasil pós-pandemia


Quando se observa as populações mais vulneráveis socioeconomicamente, o acesso a esse lugar de acolhimento encontra caminhos que são como os labirintos do cérebro.

“Além de estarem mais sujeitas a depressão, ansiedade e risco de suicídio, pessoas menos favorecidas não encontram assistência psicológica e psiquiátrica com facilidade”, diz Meleiro.

Conforme destaca a psiquiatra, o SUS é o único meio que muitas delas encontram para ter acesso a esses serviços: “tanto na Unidade Básica de Saúde (UBS) quanto na Assistência Médica Ambulatorial (AMA), ou mesmo em prontos socorros, ainda falta estrutura de intervenção e acompanhamento”.

Dra. Alexandrina Meleiro, psiquiatra e membro do Conselho Científico da Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos (Abrata) (Foto: Divulgação/Abrata)
Foto: Divulgação/Abrata Dra. Alexandrina Meleiro, psiquiatra e membro do Conselho Científico da Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos (Abrata)

Meleiro acrescenta que “a psicoterapia, que é um dos processos terapêuticos que é indicado para quem sofre ansiedade, depressão, também não tem acesso tão fácil a essas pessoas, o que faz com que elas de fato fiquem mais vulneráveis por não receberem o tratamento adequado”.

“Como é que nós podemos assegurar a qualidade de saúde mental para essas pessoas? Exatamente favorecendo as questões das quais elas são carentes”, conclui.

“A questão da segurança alimentar, a segurança financeira, direitos a acessos básicos como educação, lazer, educação, saúde e mesmo a questão da segurança, pois roubo ou assalto acaba deixando as pessoas mais vulneráveis”, completa.

Na avaliação de Alexandrina, que é membro do Conselho Científico da Associação Brasileira de Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos (Abrata), o sistema como um todo não colabora para que a saúde mental dos brasileiros tenha qualidade.

“Isso implica em pouco acesso não só à terapia, mas também a uma consulta médica psiquiátrica para que possa, de fato, fazer o diagnóstico correto e, com isso, a conduta correta, que nem sempre a conduta é medicamentosa”, salienta.

“Muitas vezes a conduta é uma orientação, é uma psicoterapia, são outras abordagens que não só remédio, mas, infelizmente, principalmente com o advento da inteligência artificial e mesmo antes com o ‘doutor Google’, as pessoas recorrem muito à internet para o autodiagnóstico, que é um grande erro, e, com isso, a automedicação”, acentua.

O autodiagnóstico e a automedicação são dois problemas que preocupam especialistas quando o assunto é saúde mental(Foto: Marcos Moura/Prefeitura Municipal de Fortaleza)
Foto: Marcos Moura/Prefeitura Municipal de Fortaleza O autodiagnóstico e a automedicação são dois problemas que preocupam especialistas quando o assunto é saúde mental

É nesse contexto que residem, de acordo com a representante da Abrata, os riscos de abuso de substâncias como antidepressivos, ansiolíticos e psicoestimulantes (como remédios para dormir, acordar ou hipnóticos).

“Essa é uma atitude bastante prejudicial e que não recomendamos. É importante, primeiro, um diagnóstico correto, um diagnóstico diferencial e estabelecer a conduta, para depois, sim, a gente poder acompanhar as pessoas”, realça.

“Mas isso não é o que a gente vê — e não é só na classe baixa, que não tem recursos para consulta. Infelizmente, a gente vê isso também em classes mais altas, onde a internet acaba tendo uma influência negativa nesse quesito”, lamenta.

Apesar de facilitar a troca de informações, a internet não substitui uma consulta com médicos especializados(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Apesar de facilitar a troca de informações, a internet não substitui uma consulta com médicos especializados

“Em tempos de redes sociais, todos parecem sedentos em dar nomes às suas dores, em se automedicar ou buscar sintomas que se enquadrem em categorias diagnósticas”, comenta a psicóloga Jurema Dantas.

“Isso nos chama atenção e nos convida a dar um passo atrás: um passo na direção de ações coletivas de cuidado, encontros afetivos, espaços de diálogo onde, antes de qualquer diagnóstico, venha a partilha e a possibilidade de pensar sobre si mesmo”, explicita.

“Que a saúde mental possa ser um campo de cuidado integral e que o sujeito contemporâneo encontre na saúde mental oportunidade de reinvenção da vida”, pontua Dantas, que é coordenadora do Laboratório de Estudos em Psicoterapia, Fenomenologia e Sociedade da Universidade Federal do Ceará (Lapfes/UFC).

 

 

Mulheres, jovens, pessoas LGBTs e desempregadas têm piores taxas de saúde mental no Brasil

A primeira edição de um índice inédito lançada em agosto identificou que, no Brasil, a sanidade mental é mais atingida em mulheres, pessoas trans, jovens e desempregados.

Encontros com amigos, questões de autoestima e bullying foram determinantes para o resultado do estudo, que também deu destaque ao consumo de bebidas alcoólicas e cigarro relacionado a essa questão.

Os fatores que apresentaram maior associação com a saúde mental dos entrevistados pelo Índice Instituto Cactus - Atlas de Saúde Mental (iCASM) foram gênero, orientação sexual, renda, situação profissional, relações familiares e prática de esportes. Observe o gráfico:


Esgotadas: no Brasil, esse é o adjetivo que melhor define as mulheres quando o assunto é saúde mental. Quase metade das brasileiras sofre de ansiedade, depressão ou algum outro transtorno mental após a pandemia, conforme indica relatório da ONG Think Olga, consultoria em equidade de gênero.

A pesquisa revela que sete em cada dez brasileiros diagnosticados com esses transtornos são do público feminino, composto principalmente por mulheres negras e pobres, que apontam situação financeira, sobrecarga do trabalho e cuidados com a família como as razões preponderantes.

Estresse, irritabilidade, baixa autoestima, fadiga, sonolência, insônia e tristeza são os sintomas mais citados entre as entrevistadas do estudo. Acompanhe o gráfico:

Sentimentos frequentemente presentes no dia a dia das mulheres, em porcentagem


A perspectiva de gênero, que carrega interseccionalidades como raça, classe e outras diferenças, além de influenciar nas relações sociais, fica evidente ao analisar que 53% das pessoas que vivem com distúrbios causados por abuso de substâncias também são mulheres.

É o que indica outro estudo, desta vez da organização internacional IHME (The Institute for Health Metrics and Evaluation), que frisa: “Não é possível falar sobre a saúde mental dessa parcela da população considerando apenas fatores biológicos, como metabolismo, ciclos reprodutivos e hormônios”.

Enquanto elas precisam dedicar em torno de 21,4 horas semanais para os serviços de cuidado (que abrangem tarefas domésticas e bem-estar de toda a família), os homens dedicam 11 horas — destaca a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) realizada em 2022.

Esgotadas: no Brasil, esse é o adjetivo que melhor define as mulheres quando o assunto é saúde mental(Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Esgotadas: no Brasil, esse é o adjetivo que melhor define as mulheres quando o assunto é saúde mental

Já o relatório “Esgotadas” mostra que a sobrecarga de trabalho doméstico e a jornada excessiva de trabalho são a segunda causa de descontentamento mais apontada, atrás apenas de preocupações financeiras. O trabalho de cuidado sobrecarrega principalmente as mulheres de 36 a 55 anos (57% cuidam de alguém) e pretas e pardas (50% cuidam de alguém).

Conforme o relatório, mesmo as mulheres que não foram acometidas por transtornos mentais relataram grande insatisfação em diferentes áreas da vida, principalmente em relação à situação financeira e a dificuldade de conciliar diversos papéis.

Dentre as estratégias para cuidar da saúde mental estão atividades físicas, práticas voltadas à espiritualidade, desfrutar de mais tempo com família e amigos, cuidar da aparência, focar nos estudos, leitura e trabalho, cuidar da alimentação e aproximar-se da natureza.

Satisfação do público feminino em cada área da vida, por porcentagem


 

 

Falta de saúde mental cria ciclo vinculado à perda de produtividade

Além do impacto sobre a vida pessoal, os transtornos mentais também afetam o desenvolvimento do País, uma vez que estão entre as maiores causas mundiais de incapacitação.

A nível nacional, eles são a terceira maior motivação para afastamento do trabalho.

Somente em 2022, de acordo com o Observatório de Segurança e Saúde do Trabalho, que coleta dados públicos do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), quase 10 mil brasileiros tiveram como motivos para a concessão de benefícios previdenciários acidentários causas mentais e comportamentais, bem como nervosas.

Benefícios concedidos pelo INSS por motivos mentais e comportamentais no Brasil (2022)


No Ceará, os números do INSS apontam que cerca de 12% dos pedidos de afastamento têm motivação em questões de saúde mental — do total de 1.762 benefícios concedidos, 199 foram registrados por causas mentais e comportamentais.

Seja por estresse excessivo, assédio moral, esgotamento que leva a síndromes como o Burnout ou uma série de outros motivos, transtornos de saúde mental presentes no dia a dia laboral têm levado a situações extremas.

Como mostra levantamento do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em julho, o número de suicídios cresceu 11,8% em 2022 na comparação com 2021.

Benefícios concedidos pelo INSS por motivos mentais e comportamentais no Ceará (2022)


Em 2022, foram 16.262 registros, uma média de 44 por dia, enquanto que em 2021 foram 14.475.

Em termos proporcionais, o Brasil teve 8 suicídios entre cada 100 mil habitantes em 2022, contra 7,2 em 2021 — e parte considerável desses casos aconteceu entre pessoas que estavam em atividade de trabalho.

Agricultores e profissionais que atuam nas áreas de pecuária, produção florestal, pesca e aquicultura figuram entre as mais afetadas, seguidas de policiais, bombeiros, agentes carcerários, trabalhadores da enfermagem, da construção civil e de transportes.

Lívia Ferreira é psicóloga, psicanalista e doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Ela compartilha reflexões e responde dúvidas sobre psicanálise no perfil @liviafer_ no X/Twitter(Foto: Acervo pessoal/Lívia Ferreira)
Foto: Acervo pessoal/Lívia Ferreira Lívia Ferreira é psicóloga, psicanalista e doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Ela compartilha reflexões e responde dúvidas sobre psicanálise no perfil @liviafer_ no X/Twitter

Para a psicóloga e psicanalista Lívia Ferreira, a relação entre saúde mental e produtividade existe, mas não deve ser analisada de maneira apressada.

Ela explica que há muitos movimentos para pensar a saúde mental laboral que atuam em um âmbito mais individual, com palestras em empresas sobre o tema ou dicas de autocuidado que estimulam, por exemplo, práticas de exercício físico, alimentação saudável, a busca por um hobby ou a meditação.

“Tudo isso tem, sim, sua importância, mas não dá conta do problema. É preciso pensar de maneira mais ampla e coletiva, combatendo o desemprego, repensando as jornadas de trabalho, lutando por leis trabalhistas que sejam efetivamente aplicadas”, coloca.

A psicóloga acrescenta que “a instabilidade empregatícia e o afrouxamento das leis trabalhistas são alguns dos grandes causadores das jornadas exaustivas e da necessidade de exigir cada vez mais produtividade, uma produtividade sem limite. É preciso dar limite a essa exigência, e isso se faz no campo político”.

A psiquiatra Anna Carolina Araripe explica que o estresse crônico no ambiente de trabalho pode levar o indivíduo ao desenvolvimento de Síndrome de Burnout, uma patologia ocupacional caracterizada pela tríade exaustão emocional, despersonalização (um afastamento/rigidez ou perda de empatia) e falta de realização profissional.

“Alguns fatores de risco são baixa remuneração, cargas de trabalho excessivas, metas irreais, dentre outros”, cita.

“Os prejuízos são a nível pessoal, trazendo infelicidade e insatisfação, e econômico, visto que o profissional precisa se afastar com frequência do ambiente adoecer. Por isso é essencial identificar esses casos, a fim de ofertar o suporte adequado através de psicoterapia e mudanças no ambiente de trabalho”, sinaliza.

 

 

Valorização da vida

Caso você precise de apoio emocional, principalmente relacionado à prevenção ao suicídio, procure os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) do seu município ou ligue para o Centro de Valorização da Vida (CVV) pelo número de telefone 188 ou pelo chat disponível no site https://www.cvv.org.br/quero-conversar/.

 

 

Metodologia

Para esta reportagem foram utilizadas bases de dados do estudo Depression and other common mental disorders: global health estimates, da Organização Mundial da Saúde (OMS), do Mapeamento Saúde e Prevalência 2023, do Instituto Ipsos, da pesquisa “Esgotadas: O ponto de virada na saúde mental das mulheres” (2023), da ONG Think Olga, informações do Índice Instituto Cactus-Atlas de Saúde Mental (iCASM) | Panorama da Saúde Mental, levantamento da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) e do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), além de quantitativos disponibilizados pela Secretaria Municipal da Saúde de Fortaleza (SMS).

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